João Paulo após o gol (foto de Antônio Melcop)

O milagre da Santa Cruz

Um domingo de Páscoa com sacrifício, sangue e ressurreição na Ilha do Retiro

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Por Yuri Eiras (colaboração de Esequias Pierre)

Páscoa: momento de reflexão para todos os cristãos ao redor do planeta. Hora de lembrar a dor física, o sacrifício e a ressurreição de Jesus Cristo, que partiu para a vida eterna. Todos os anos, nas sextas-feiras da paixão ao redor do mundo, as televisões reproduzem centenas de filmes contando os últimos momentos de Jesus. A imagem mais conhecida e eternizada em pingentes, esculturas e altares é a de Cristo pregado na cruz, ensanguentado nos braços, pernas e cabeça, que sustenta uma coroa de espinhos.

A Revista Fora da Área não tem vínculo religioso algum, a não ser a religião futebol. É inevitável a analogia, entretanto: no último domingo, na Ilha do Retiro, houve sacrifício e ressurreição dos fiéis à(ao) Santa Cruz. Após a confusão de torcedores com a Polícia Militar na parte externa do estádio (deixou feridos) e um jogo amarrado nas quatro linhas, onde o Sport passou o segundo tempo inteiro com a vantagem no placar, o meia João Paulo, do Santa Cruz, fez um gol no último minuto no Clássico das Multidões, empatando a partida e colocando seu nome PAPAL na história do clássico.

A dor física: o calvário tricolor

(Ademar Filho / Estadão Conteúdo)

Duas torcidas imensas, um estádio histórico e uma corporação viciada em tumulto e gás de pimenta. Era um domingo a tarde em um dia de Páscoa, tempo de reflexões, bacalhau e chocolate. O que os torcedores do Santa Cruz receberam ao redor da Ilha do Retiro, entretanto, foi bala.

A torcida do Santa sofreu para ocupar as arquibancadas do estádio. Pelo número insuficiente de catracas para o acesso, a fila se desconfigurou na entrada. A reconfiguração da galera coral foi na base da porrada por parte da polícia. Tumulto, xingamentos: rotina para um clássico em um Recife sangue-quente. Um abençoado, porém, registrou o absurdo que aconteceu durante uma abordagem policial: um cidadão, ao cometer o crime hediondo de COMPRAR UMA GARRAFA DE ÁGUA, recebe de um policial militar um tapa COLOSSAL no rosto. Foi aí que o caldo azedou.

As cenas posteriores filmadas pelo mesmo cinegrafista (está no Globoesporte.com) é a mesma angústia passada em diversos estádios do Brasil: o tratamento do torcedor como gado. Filas imensas com portões minúsculos, confusão inevitável (o acesso era ‘ideal’ para a torcida visitante, segundo a PM). Daí, spray de pimenta nos olhos dos torcedores tricolores. O vídeo mostra crianças tendo que pular as grades com seus pais; homens, senhores e mulheres tropeçando uns nos outros. Aterrorizante.

É fato também que antes e após a partida tivemos casos de violência entre as torcidas de Sport e Santa Cruz, principalmente na Avenida Beira Rio, zona central de Recife.

Entre feridos por balas de borracha e cassetetes, entraram todos no estádio para acompanhar o clássico pascal.

(Foto Guga Matos / JC)

O sacrifício: honra em campo

(Paulo Paiva / DA)

Disputando a semifinal da Copa do Nordeste, o Sport Recife levou um time misto para o clássico. Sem muito motivo para entrar mais duro, as duas equipes passaram boa parte do primeiro tempo sem atacar. Nas arquibancadas, as duas torcidas protagonizavam um espetáculo. Dentro do campo, um jogo pegado, sem lances de técnica. ‘Parecia até um frevo naquele vai-e-não-vai’.

No primeiro minuto do segundo tempo, pênalti para o Sport e o zagueiro coral expulso. Jogando em casa e vencendo por 1 a 0, o Sport não se intimidou e continuou partindo para cima, até o último minuto, quando veio o gol de empate.

Em um dos últimos lances do jogo a favor do Santa, Nininho lançou a bola para a área em cobrança de lateral. A bola escorou na cabeça de Betinho e foi parar em João Paulo. Ele disputou a bola no alto e marcou o gol de empate.

A ressureição: Santo Sangue, Santa Cruz

O detalhe, meus amigos, digo agora: João Paulo, antes de cabecear a bola, foi atingido na cabeça pela chuteira de Osvaldo, zagueiro rubro-negro. Ele fez o gol ferido, comemorou pulando as placas de publicidade e tropeçando nos fotógrafos, foi para a torcida e desabou no chão. Ao levantar, como quem ressurge ao terceiro dia, o assombro: João Paulo era TODO SANGUE.

(Foto Aldo Carneiro / Pernambuco Press)

A camisa branca de João Paulo ficou orgulhosamente vermelha com detalhes em preto e alguns patrocínios. Vermelha como sua barba, sobrancelhas e nariz ficaram.

A Santa Cruz é misericordiosa e, no domingo de Páscoa, fez ressucitar o grito de gol da garganta de seus súditos, com um barbudo que se sacrificou, no último minuto, por um brasão em vermelho, preto e branco. Não foi vitória, foi empate. Mas quem se importa? O clássico foi histórico, eterno e já está sentado à direita dos deuses do futebol.

Não há traidor que apague a imagem de João Paulo sangrando, não há Pilatos no mundo atinja com bala de borracha nossa paixão por futebol. Creio, mais do que nunca, na força da Santa Cruz e na fé de seus súditos torcedores.

Arruda, sangue, sacrifício e ressurreição.

Toda quarta-feira, a partir das 11 horas, um novo texto no Medium Brasil. Amarre as suas chuteiras e se deixe levar pela FORA DA ÁREA. O espaço do futebol-verdade.

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