Foto: Pedro Kirilos/Jornal O Globo

O santo suor em uma velha camisa cor de sangue

Os torcedores do America voltam aos tempos de garoto com o time campeão e prometem: ‘Nós ainda queremos muito mais’

Revista Fora da Área
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10 min readJul 29, 2015

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Por Yuri Eiras

“O pôr do sol vai renovar, brilhar de novo o seu sorriso. E libertar da areia preta e do arco-íris cor de sangue, cor de sangue, cor de sangue” (Luiz Melodia)

Em uma rua do Rio Comprido, zona norte do Rio e braço da Tijuca, há um vendedor de frutas muito velho, cheio de rugas e já cego de um olho. É Seu Tonico. A perna esquerda, completamente enfaixada há anos, faz qualquer pessoa desconfiar da história que ele conta a cada freguês que compra na sua mão:

— Eu já joguei muita bola por aí, você sabia? Fui ponta-esquerda do Fluminense. — garante o vendedor, mesmo sem registros fotográficos.

Quem gosta de futebol até se interessa em puxar um papo. Não é todo dia que você compra uma dúzia de bananas-prata com um ex-ponta do Fluminense. Seu Tonico, no entanto, não se recorda nem a década que isso aconteceu. Só repete que “faz muito tempo, meu filho”. E aí qualquer cliente desacredita. Aqui vai um recado direto para o velho: utilize mais números exatos e menos aproximações, Seu Tonico. Dez bananas não são uma dúzia, mesmo estando graúdas, ok?

O que é verdade — e posso atestar — é a paixão de Seu Tonico pelo America. Sempre quando passo com uma camisa retrô do Rubro ele insiste em puxar assunto. Confesso que tenho medo de dizer que não sou torcedor do America, apenas um simpatizante — assim como metade da população carioca. Quando ele me vê com aquele manto, parece esquecer que é sempre a mesma pessoa. Imagino que, para ele, cada vez que passo é uma pessoa diferente. Nos transeuntes americanos, que na verdade é somente eu, ele deposita toda a sua esperança de que o America não acabou. Eu tenho dó de confessar que sou Flamengo. Medo de ele me encarar, com os olhos rasos d’água e aquela cara de ‘só sobrou eu?’. Mas ele continua lá: caneta do America na orelha e adesivo gigantesco com o escudo numa Uno antiga.

Torcedores do America, assim como Seu Tonico (Foto: Sandro Vox/America Rio)

O cara é das antigas mesmo. Nas nossas conversas de futebol, ele costuma dizer que ouviu na resenha esportiva do rádio que um jogador qualquer foi vendido por um bom tostão. Não são termos de quem assiste o ‘Seleção Sportv’, convenhamos. O aparelho de rádio, seu fiel escudeiro no balcão de frutas, parece estar ligado desde que eu nasci. Sempre sintonizado na Rádio Tupi (e na frequência AM, já percebi), Seu Tonico nunca desligou a latinha na esperança de, um dia, ouvir alguma notícia do seu America Querido.

Quarta-feira passada, dia 15 de julho, ele enfim ouviu. Graças a muitas pessoas que não desistiram do ‘sonho americano’, assim como Seu Tonico.

(Foto: Sandro Vox/America Rio)

As dores que forjam a espada

O purgatório da vida recente do America não durou pouco. Foi necessário superar as crises técnicas e financeiras, a pressão da exigente torcida, a perda da sede social e de torcedores antes fiéis, do tipo que só frequenta nas boas. As competições estaduais da Série B viraram um fardo, um balde de água fria para seus seguidores, que olhavam para as glórias do passado com a certeza de que ele estaria cada vez mais longe.

Desde a sua segunda queda para a Série B do Campeonato Carioca, em 2012, o America disputou algumas decisões para o tão sonhado acesso. Bateu na trave em todas. Em 2012, na classificação geral da Segunda Divisão, o America obteve apenas a 13ª colocação. No ano seguinte, o clube até conseguiu chegar ao triangular final, mas foi batido por Cabofriense e Bonsucesso, que garantiram o acesso em seu lugar.

O ano de 2014 veio e mais uma decepção: no período de auge da crise financeira e política, com brigas entre conselheiros, o America amargou a 11ª posição na segundona do Rio. Antes, Léo Almada, em janeiro do mesmo ano, foi eleito presidente do clube. O advogado, que ficou com o cargo após a renúncia do presidente Vinicius Cordeiro, do curto mandato de Gilberto Cardeal — que também renunciou — e da convocação de eleições extraordinárias, prometia uma sede reestruturada, uma equipe competitiva e a volta do orgulho do torcedor americano. O slogan que dizia para o America ‘voltar a pensar grande, porque grande nunca deixou de ser’ fez com que o clube, em pouco tempo, voltasse a tomar espaços na imprensa carioca. A contratação do lateral-esquerdo Gilberto, que já jogou Copa do Mundo, parecia ser tudo que o clube precisava para alavancar seu marketing. Parecia.

Gilberto simplesmente desapareceu do clube em um mês depois de anunciado. A ODG Sports, então parceria do America na direção do futebol, teve o contrato rompido unilateralmente, e aí nunca mais se viu o lateral. O motivo do rompimento foi a nova direção: o contrato fora firmado ainda na gestão anterior.

Aos poucos, a tinta vermelha dos jornais, e os pixels de mesma cor dos sites e da televisão iam desaparecendo, assim como a empolgação daqueles que simpatizam com o Rubro. Os fiéis torcedores, entretanto, continuavam ali, fazendo valer os versos que dizem ‘Hei de torcer até morrer’.

O ano de 2014 ainda guardava mais uma tristeza: após diversas batalhas, foi decidida que a tradicional sede social do clube, localizada na Rua Campos Sales, na Tijuca, teria de ser desativada. Em março deste ano, em entrevista ao Jornal O Globo, Léo Almada descreveu o cenário que encontrou. “Quando assumi o mandato, em janeiro de 2014, me deparei com uma catástrofe. Os laudos do Corpo de Bombeiros e da Defesa Civil decretavam que a sede estava praticamente sem condições de uso. Havia riscos de acidentes, os banheiros estavam infectos, e as piscinas, com azulejos rachados”, afirmou. “Cheguei à conclusão, junto com o restante da diretoria, de que não tínhamos mais condições de manter a sede da maneira como estava, e nem poderíamos arcar com os prejuízos de uma reforma, pois não temos recursos. Por isso decidimos que a única forma de salvar o América era construir uma sede nova, através de um acordo com alguma empresa”, concluiu.

O cenário de abandono já era nítido na fachada: mastro sem bandeiras, nome sem algumas letras, paredes sem pintura. A solução foi levar os sócios para o Club Municipal, localizado ao lado. Ainda existe o plano para que ali seja construído um shopping, com a área social destinada ao America dentro do empreendimento.

Foto: Guilherme Leporace / Agência O Globo
(Canal p2ldigital)

E nem na hora da glória o America deixou de sofrer. Pelo menos no lado de fora do campo.

O título da Série B de 2015 veio na vitória de 2 a 1 sobre a Portuguesa da Ilha do Governador. Os dois já haviam garantido o acesso à primeira divisão do futebol carioca, mas ainda assim a luta foi grande durante a perdida. O vídeo ao lado mostra Enric, lateral que nem jogou a partida, passando mal no banco de reservas. Ele teve uma queda de pressão durante os minutos finais da partida e foi amparado pelos colegas de clube.

(Canal p2ldigital)

Os gols do America foram marcados por Marcelinho e Vagner Eugênio.

‘America, unido vencerás’

Um clássico do Youtube (trecho do curta America, unido vencerás [2002, Raça Filmes])

O último verso do famoso hino americano, composto por Lamartine Babo, resume os vários momentos da vida do America. Além de dar nome ao curta-metragem sobre o próprio clube, no qual o trecho onde aparece o torcedor ‘João do America’ virou sucesso na internet, ele exprime o momento atual: apesar das discordâncias políticas que cercam o clube tijucano, a situação necessitava, urgentemente, de união.

Thiago Monteiro Accioli tem apenas 23 anos de idade, a maioria deles passando o dia a dia de um jogador de futebol. Ele é meia ofensivo (Seu Tonico diria ponta-de-lança) e foi um dos responsáveis, no campo, pelo título da Série B deste ano. Apesar da pouca idade, ele já passou por várias experiências como atleta, inclusive na Espanha. Em conversa com a FORA DA ÁREA, ele contou um pouco da sua trajetória. “Fiz a base toda no Nova Iguaçu FC, mas saí no juniores, pois tive uma oportunidade de ir para o Espanyol da Espanha. Fiquei lá um mês, mas não consegui ser inscrito e voltei ao Brasil”, conta Accioli, que depois da volta passou ainda por Olaria, São Gonçalo EC, Boavista, Desportivo Brasil (SP), Campo Grande (RJ) e São José (MA), até chegar ao America no início de 2015.

Accioli (camisa oito) comemora gol contra a Portuguesa. (Foto: Sandro Vox/America Rio)

Accioli foi contratado após uma peneira feita pelo America no início deste ano. A comissão técnica selecionou alguns jogadores para o elenco profissional e, entre eles, estava Accioli, que, com 7 gols e 19 jogos no campeonato, rapidamente virou o xodó da torcida americana. O carinho que a massa tem pelo meia é recíproco. “Antes de jogar no America não tinha noção do tamanho dessa torcida e da responsabilidade que é defender a camisa de um clube com tanta tradição”, conta. “Até pensava que era pequena (a torcida), mas quando você começa a fazer parte e conhece a história do clube, aí que tem a dimensão da grandeza que é o America”, conclui.

A fidelidade dos torcedores americanos, assim como a cobrança, é motivo de alegria para Accioli. “(o America) Tem torcedores espalhados pelo Brasil inteiro, que não estavam acompanhando por causa da fase difícil que o clube se encontrava. Disputando a Série B, que nem televisionada é”, afirma Accioli, que imagina o clube ainda mais forte na primeira divisão do ano que vem. “Com a volta para a elite, vamos lotar os estádios. A cobrança é grande, mas eles também apoiam bastante e isso ajuda muito os jogadores ali dentro de campo. Eu, em especial, me senti muito bem com a o show que eles faziam nas arquibancadas”, conclui o camisa oito do America.

Accioli comemora gol contra a Portuguesa (Foto: Sandro Vox/America Rio)

Entre seus companheiros de vestiário estão algumas figuras conhecidas do futebol carioca. Somália, ex-Fluminense, Jean, ex-Fla e Vasco da Gama, além Wagner Diniz, Abedi e Fábio Braz, que também jogaram no Vasco, são as peças experientes no elenco Rubro, que mescla a experiência com a juventude de alguns jogadores formados nas categorias de base do clube.

Fábio Braz, Wagner Diniz, Somália, Jean e Abedi (Foto: Raffa Tamburini/America Rio)

Flavio Gomes de Mattos é torcedor do America. Frequente usuário do Facebook, ele tem 89 anos. Nas publicações, volta e meia algumas declarações sobre o America. Em todas elas, a lembrança do passado. A torcida pelo America, segundo ele, vem de 1936, quando tinha 9 anos. “Alguém agachado ouvia a transmissão de um jogo num radinho que chiava muito, e mal se ouvia gol. Era um América e Fluminense, decidindo o campeonato. O jogo estava terminando e o Flu ganhava de 5 a 4”, conta. “Então ouvi o locutor gritar goool do América, Plácido! Jogo empatado. Um ou dois minutos depois o grito se repetia: goool do América, novamente Plácido! Apito final: 6 a 5 América. Esses poucos minutos decidiram que time passaria a torcer nos 80 anos seguintes”, conclui Flavio, descrevendo a sua primeira história de amor ao America.

Em muitas conversas com torcedores, nas alegrias ou tristezas, é comum ouvir algum relato sobre um certo America e Flamengo que aconteceu em 1956. Flavio Gomes, em muitas postagens, costuma falar da partida. O jogo já faz 60 anos, mas as reclamações ainda ecoam na cidade. Era o terceiro jogo da final do Campeonato Carioca daquele ano e cada time havia vencido uma final anterior. Quase 150 mil pessoas em um Maracanã abarrotado viram uma entrada criminosa de Tomires em Alarcón, um dos craques do time do America. Tomires era conhecido por ser um carniceiro de primeira e com a fera do Diabo não foi diferente. O resultado foi um passeio de Dida na equipe tijucana: quatro a um, com quatro gols dele.

Em 2016, o America voltará a jogar no Maracanã, fato que não acontece no campeonato desde 2010. Voltará também a enfrentar o Flamengo, exatamente 60 anos após o jogo de 1956, onde Tomires quebrou Alarcón. Estarão mordidos, é claro.

Campeões de 13, 16, 22…2015!

Em pé: Felipe, Marlon, Vagner Eugênio, Fábio Braz, Darlan e Taércio. Agachados: Léo Rocha, Marcelinho, Jean, Accioli e Muniz.

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