Foto retirada do site TETO Brasil

Se essa rua fosse minha

A especulação imobiliária e o declínio galopante do futebol brasileiro

6 min readMar 19, 2015

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POR REVISTA FORA DA ÁREA

Domina, olha para o horizonte, conduz; esquiva-se, se liberta da marcação, equilibra-se novamente; um combate mais duro o leva ao chão. Levanta, sacode a poeira (literal e barrenta), dá a volta por cima. Na juventude, as tardes e noites de Mosquito, em boa parte da semana, eram a repetição dessas ações à exaustão. Mosquito é Pedro Marcelo Silveira de Paiva, ex-jogador de futebol. Morador do Turano, favela localizada na zona norte do Rio de Janeiro, Mosquito passou parte da infância e da adolescência jogando bola em um antigo campo de terra perto de sua comunidade. Entre bolas dentro das balizas — não havia rede — e chutes no terreno baldio vizinho ao campo, Mosquito transformou seu sonho em realidade. Foi ali que o menino franzino, costelas à mostra, tornou-se jogador profissional; e foi para o mesmo lugar que ele voltou após uma lesão grave no joelho, que encerrou precocemente sua carreira de atleta.

Mosquito saiu do Turano aos 16 anos de idade, direto para fora do país. Recebeu propostas para jogar na primeira divisão austríaca, após ser descoberto em um torneio entre favelas. Muletas carregaram o peso do garoto e o de sua frustração, cinco anos depois da partida para a Europa. Aos 21 anos, lesionou o joelho no meio da temporada. A recuperação foi demorada e o clube decidiu pela recisão de seu contrato. Voltou para o Brasil na esperança de continuar seu sonho de jogador profissional, mas tudo virou poeira, como aquela que caía quando criança.

Homens trabalhando: crianças sem brincar

Na volta para a comunidade, em 2012, Mosquito encontrou guindastes e materiais de construção sobre o campinho de terra que costumava brincar durante a infância. Crescia ali um novo empreendimento imobiliário: blocos residenciais com vários andares e amplo espaço de lazer; piscina, salão de jogos e campo de futebol. As dimensões da nova quadra localizada dentro do condomínio são idênticas as do antigo campo de terra que havia ali. A quadra particular, no entanto, é cercada por grades e possui grama sintética. A diferença maior é que agora, para jogar no espaço, é preciso ser morador do condomínio ou convidado do mesmo. Moradores deste condomínio não convidam crianças da favela ao lado.

Cadê a felicidade que morava aqui?

A Unidade de Polícia Pacificadora foi instalada na comunidade do Turano no fim de 2010. Entre grande contingente policial e contêineres da UPP instalados em várias localidades do morro, pouco se fez em cultura e lazer para os pequenos e pequenas do lugar. Alguns espaços antigos estão abandonados, como o campo de futebol na parte alta do morro. Entre os vários golzinhos mal ajambrados espalhados pela região, apenas dois recebem algum tipo projeto da prefeitura ou do governo do estado. São escolinhas de futebol para as crianças, que funcionam de duas a três vezes na semana, quando não há tiroteio. Os tiroteios estão cada vez mais corriqueiros na região.

Para Mosquito, o cerco está se fechando para os moradores de favela que sonham em um dia serem jogadores de futebol. É impossível, segundo ele, ter uma carreira de relativo sucesso sem algum representante comercial ou empresário particular por trás. Dinheiro, portanto, é o segredo. Sua empreitada até a Europa, para ele, foi um golpe de sorte. A falta de estrutura para recuperar-se da lesão no joelho até o precoce encerramento de sua carreira foi o processo de ‘choque de realidade’. Dura rotina daqueles que sonham em um dia trocar a terra batida pelos gramados europeus. “Não foi azar da minha parte, é falta de investimento para os menos badalados”, garante. Mosquito diz ainda que com a sua experiência aprendeu como funciona a economia do futebol. “Um por cento ganham milhões, noventa e nove mal ganham o almoço”, desabafa.

Os mini-adultos

Foto: Marcos Ribolli (Globoesporte.com)

A responsabilidade é tão grande que mal cabe naqueles meninos de, no máximo, um metro e meio. Desde pequenos acostumados com a pressão imposta pelos pais e professores, os alunos da escolinha do Santos Futebol Clube tem a postura de jogadores profissionais.

Para Clailson Souza, o Tatu, ex-professor de um dos núcleos de categorias de base do Alvinegro Praiano, é fácil perceber que muitos daqueles meninos vivem o sonho dos pais.

— Eu lido com cerca de quinhentas crianças e adolescentes por semana. A maioria realmente está ali por querer atingir o sonho de se transformarem em jogadores de futebol. Mas vejo que outros só estão ali porque querem agradar seus pais. São eles que, na verdade, alimentam o sonho de que o filho possa ser jogador. — afirma o treinador.

Na visão de Tatu, a pouca qualidade apresentada no futebol brasileiro atual é fruto de uma filosofia nebulosa implantada aos clubes brasileiros há algum tempo.

— O Santos, apesar de revelar mais craques que os outros clubes, não é diferente da estrutura dos outros, no geral. O que acontece é que Santos está em uma região sem concorrência entre clubes, o que facilita na formação dos atletas. Não há a competição para obter um passe de um bom jogador da região, por exemplo. Não há outro clube grande. É por isso que o Santos revela, quase sempre, jogadores do próprio Litoral Paulista. — explica Tatu.

A experiência de quem entende do assunto também contribui para o diferencial na formação do Peixe. O jovem ressaltou o olhar clínico de Betinho, olheiro que hoje trabalha no Instituto Neymar Jr. e é um verdadeiro ‘caça talentos’ da região.

Competição x formação

Foto: Djalma Vassão/Gazeta Press

Robinho, Diego, Neymar, ‘Gabigol’. Jogadores ofensivos que possuem em comum o fato de terem surgidos franzinos e de baixa estatura. Todos eles também são conhecidos pela habilidade. O tal ‘futebol moleque’. Clailson vê dificuldade para os meninos com este tipo físico.

— Muitas vezes vi bons jogadores serem barrados nos clubes por causa da estatura. O ponto-chave é que a base hoje é competitiva, ao invés de formadora. O treinador das categorias de base procura jogadores com certo padrão para manterem seu emprego. Deixamos de lado a qualidade. Isso é um fato e acontece em quase todos os lugares. — garante o jovem treinador.

Vamos voltar a sambar

O drible se mostrou a jogada fundamentalmente brasileira durante nossa aventura pelo esporte bretão. No entanto, obstáculos difíceis nos fizeram alçar bolas na área da mesmice. O dinheiro de empresários e dirigentes, a ganância dos mesmos, a ausência de craques nos clubes brasileiros e até a especulação imobiliária que sobem edifícios em campinhos no Brasil afora contribuíram para a seca de qualidade no futebol daqui.

A esperança, entretanto, continua. Enquanto houver um pequeno espaço, uma bola surrada e dois pés inquietos, o futebol resistirá.

Mosquito, Betinho, Clailson e todos nós temos uma certeza: ficamos com a pureza da resposta das crianças, que quando perguntadas o que querem ser quando crescer ainda respondem sem titubear:

— Jogador de futebol.

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