Última estória de amor

Gabriel Muney
Revista in-Cômoda
Published in
9 min readDec 10, 2023

--

Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto; quem o conhecerá? (Jeremias 17:9)

Dentro da cadência de um sonho: isto que é a paixão? — perguntou-se, nua, após sentir a agulha enrolar-se no cérebro. No vão do silêncio, é que foi, entre a cicatriz e a lâmina, recostando-se às beiradas da cama, contemplando-o em seu completo estado de graça incorruptível, o corpo, sofrendo a interferência de um curto olhar-se no espelho sem reflexo, dando início ao flagelo.

E perto do rosto posicionou o punho. Primeiro o atirou contra o rosto — vendo que a dor se dissipava em gradiente, fez de novo. Aí, de palma e alma rígidas: estapeou-se incontáveis vezes; a quentura do ângulo vermelho objetivava todos os sentidos. Dentro dos olhos tentou enfiar os dedos e, por um inocente agir dum corpo que rejeita as vontades da consciência, os fechava — eram as pontas dos longos em unhas, pressionando contra o escuro as luzes em retrospecto guardadas numa íris trêmula.

A mandíbula caída do homem, viu. O corpo dilacerado do homem, viu. Este não é o homem — disse. Não dele, o roubar das horas. Pois, frente ao cadáver (de sua paixão), feito escondida, não exposta e oca, como se estivesse — ai, tenho eu de me convencer — ele à mostra na rua em que ela passeia, não na cama. Compreendeu que não era ele, único e irrefletido corpo, casa de amor e objeto amado, não o é: da inflamação resgata o sufixo -ite. Esteve ela agudíssima ao ponto de jamais enxergar? Tarde, muito tarde para perceber. Enganoso é o coração, (…) e desesperadamente corrupto.

Havia lhe dito, antes:

Me ensine como é. Como fez com ela.

Ele, dito a ela, antes:

Que dela, quer saber?

Ela, o respondido, antes:

Dela não quero saber nem o nome. E já sei. Só de ti, quero o que fizeste.

Ele, durante a combustão, antes:

Quer que te mostre o que é morrer?

Ela, lúcida, antes:

Quero que me mostre o que é o sexo. O que é morrer, ainda alguém te ensinará.

Ele, antes:

O sexo parece um pouco com a morte.

Quando tocou-a pelos braços acariciando com os dedos esguios e nada trêmulos do ombro ao pescoço e do pescoço ao ombro e do ombro às mãos sentiu ela que deveria segurar sua alma dentro de si mesma que junto das vontades ela queria escapulir pela boca dentro dum rompante de ânsia dismorfa inalterável entre padrões e olhares que nunca se olharam pois por dentro dela havia fogo que suava à testa quando ele tocou-a pelos braços acariciando com os dedos e dizendo com os dedos e se declarando com os dedos e arrancando as finas alças com os dedos e aporificando cada toque em aspereza como glândulas que caem mortas dum sonífero adocicado enquanto todas as células de um corpo se voltam pasmas para contemplar o arrepio que cada pelo imperceptível na pele dela dá.

Naquele mesmo dia, que era um domingo, pela manhã, esperava-o; queria dele a visita e ele viria, como todos os domingos vinha. Balançava a colher dentro da xícara na mesa; a mesa se balançando junto da colher, em correnteza pequena, pela janela pássaros azuis fugiam dentro das folhas verdes na chuva. Ele, ela pensou, ele não virá: é que chove neste domingo, e não virá. Levantou-se de onde estava e já agora não nos importa, na direção do corredor se interpôs, onde a casa se desfigura na escuridão mesmo em plena manhã, acinzentando, parou frente ao quarto da prima e esperou; encostou os ouvidos na porta do quarto da prima e esperou; não ouviu nada, e com as pontas das metades dos dedos dum punho fechado bateu na porta do quarto da prima e esperou; não respondendo, girou a maçaneta da porta do quarto da prima e percebeu. Cedo era e a prima não estava lá. A cama da prima arrumada, lá. O travesseiro da prima sem qualquer afundamento duma cabeça que não se deitou, lá. Eles dormiram juntos, ela pensou, dormiram juntos a noite inteira, ela pensou, tomaram alguma coisa e caíram no sono, ela pensou, passaram a noite inteira abraçados, ela pensou, entrelaçados, ela pensou, então virá, ela pensou, para trazê-la numa manhã mesmo que de chuva, ela pensou. Ouviu a porta entrechocar-se contra a parede; rapidamente, ela se retirou do quarto da prima.

Notou que acinzentado ainda era o dia, e que ele veio, junto da prima, vinham iguais em ritmo e passos, e a prima sorria sorria sorria, seu rosto brilhava como fogo pálido, de tão saudável, ele disse:

Bom dia.

Ela, pondo a voz para fora da língua:

Bom dia.

E a prima:

Mamãe percebeu que eu estava fora, Lidinha?

Ela, contendo a voz para dentro da boca:

Acordei agora. Titia já havia ido à feira quando saí do quarto. Não sei se ela percebeu.

Ele disse, e depois de dizer, deu um beijo na boca da prima, e saiu:

Já vou, antes que ela volte e me veja aqui. Aproveite o seu domingo, meu amor.

A prima, dando-lhe de volta outros beijos, brilhando os olhos na direção dele, disse:

Vá — sorrindo sorrindo sorrindo.

Pelas passagens da manhã ouviu a prima contar, enquanto sorria sorria sorria, de sua noite com o homem que contra as paredes a jogou, dentro do quarto dele, por dentro do diâmetro de uma casa fedida, a casa de um homem que só vive, como sons de pês, entre-lábios fechados se entregando, e usando a língua, a prima contou, ela lambeu, a prima contou, todo o corpo do homem que ama, a prima contou, e ele a tocou, a prima contou, como jotas enclausurados numa frase que não os cabe, a prima contou, e a tratou com o amor de eras, a prima contou, como se fossem estrelas dançando num escuro vazio roxo e anoitecido, a prima contou, e Lidinha reimaginou a cena conforme a prima aguçava o olhar, remontando (o tempo — movendo, removendo), é que sequer pergunta alguma a fez, mesmo assim a prima contou, tudo enquanto ela dormia, ela ouviu.

E o que é o amor, sem a luxúria? (De aliterações não reconhece como uma vontade, uma inveja, tanto que se contrapõem aos sustos, totalmente entregue à ira, demorando ouvir, e um rosto muito pálido, muito lívido, em contrassenso tranquilo ou intranquilo, por dentro amaciando as carícias, com quem ela sonhou, tudo enquanto ela dormia, ela ouviu, parênteses entre parênteses.) A murta é uma planta de folhas brilhantes e flores perfumadas.

Ainda menos ou pelo menos, recebeu dele a visita, um singelo e doce e frio bom dia, palavras perenes conquanto aquilo se arrastava, dentro dela um pavor / um horror / um tremor, e tal bom dia soou como um não pensei em ti, esta noite, nem lembrei de ti, esta noite, sequer soube que existias ti, esta noite, toquei o corpo de outra mulher, esta noite. Ela ouviu, enquanto sorria sorria sorria, palavras saídas da boca num rosto que sonha, uma língua de fissuras, englandescida, por quem se deleitou toda a noite do corpo de um homem, dos peitos de um homem, dos suores de um homem, da boca de um homem, do erógeno de um homem, ainda que não te reconheças sempre serás a mesma, de mesmo rosto e penúria; a felicidade encanta: mas se há algo que melhor encanta do que esta, é a ira, a raiva, a inveja, diante daquele que está feliz. Coisa vulgar é o ciúme.

Por isso, perante o entardecer, saiu. Perfurmou-se como nunca. Do corpo, sais, sainte porém de si mesma um canto, e outras coisas jamais perdidas, por dentro da alça costurada do cinto uma faca já ensanguentada, que levava para julgá-lo uma primeira e última vez, apreendendo-se das amarras, de todo iludida como nunca, e amarfanhada como sempre, os cabelos havia soltado fio-a-fio, agora aprenderia na sua língua sobre consoantes.

Bateu-lhe um pouco fracas vezes à porta. Lidinha esperou e não repetiu. Percebeu que a chave se envergava. Atendeu-lhe francamente:

O que é? — assustado. — Aconteceu algo com Francisca?

Fran está bem. Eu é que tenho algo a que com você resolver.

O que é? — assustado.

Não é nada demais, você verá. Posso entrar?

Assustado ele deu espaço; ela entrou na casa e percebeu seu cheiro único de homem desleixado que vive só; apaixonou-se mais por ele quando notou; era um cômodo de paredes manchadas com um banheiro e uma pia; o resto dos móveis eram velhos e a cama, desarrumada; vendo-a, perguntou:

Foi aqui?

Aqui, o quê?

Aqui, onde você fez amor com ela?

Sim — friamente, disse. — Aqui. Ela te contou?

Tudo, ela me diz. Tudo o que vocês fizeram, ela me disse. Tudo.

E o que é? O que você quer?

Quero saber.

Quer saber?

Quero saber como é. Como foi que vocês fizeram.

Francisca sabe que você está aqui?

Francisca nunca mais saberá de coisa alguma.

Francisca é quem mandou você vir aqui?

Francisca nunca mais me mandará fazer coisa alguma.

O que é?

Tocou-no ao ombro; ele estava descamisado; olhou-no insensível e tocante; tateou com os dedos sua clavícula, até que ele se afastou, dizendo:

Não entendo o que você veio fazer aqui.

E lhe disse:

Me ensine como é. Como fez com ela.

E quando o pediu, quando ele a tocou, quando.

Com pouco a jogou na cama com firmeza e o calor incendiou a atmosfera quando eles se entregaram a beijos e carícias envolvidos cada qual em cada toque em cada movimento de uma luz frenética de desejo desinibido enquanto ele se deitava sobre ela obedecendo a animosidade e a intensidade do contato por efusão de emoções e sensações meio ao ápice percebendo uma rigidez incomum traindo-a com uma pausa curiosa quebrando a cadência da exploração com surpresa. Quando ela o puxou de volta, trocou com ele de posição, reinventou com ele a última estória de amor, puxou da alça a faca e com ele por debaixo dela, pernas enroladas ao torso do homem, esfaqueou o homem, a lâmina enfiou e correu por dentro e por fora do homem, na garganta do homem, nos olhos do homem.

Isto que é a paixão? — perguntou-se, nua, após sentir a agulha enrolar-se no cérebro. No vão do silêncio, é que foi, entre a cicatriz e a lâmina, recostando-se às beiradas da cama, contemplando-o em seu completo estado de graça incorruptível, o corpo, sofrendo interferência de um curto olhar-se no espelho sem reflexos, dando início ao flagelo.

Bateu-se e de imediato, arrependeu-se.

Não era ele, o amor e a imensidão. Observou que o sangue espalhava-se como fungos pelo lençol e pelo travesseiro e já pingava nas beiradas onde ela estava suspensa, diante do homem, do corpo do homem, dos olhos impossíveis do homem: beijou sua boca absurda: acariciou seu rosto absorto: lambeu dele o sangue que escorria pelo peito e sentiu o gosto do mamilo como havia reimaginado Francisca fazer. Coisa vulgar é o desejo.

Levantou-se e na mesa havia uma maleta. Nela, pregos. Um martelo pendurado ao lado da rede junto de outras ferramentas. Buscou de dentro da maleta um, inteiro e metálico, buscou na parede o martelo vermelho e pesado, voltou para a cama e junto dele se deitou, por cima dele pôs uma das pernas, e o beijou beijou beijou, vários beijos roubados, beijos invejosos e rosados, beijos inocentes de uma fera, beijos famintos, e já não sentia ser aquilo o mesmo que imaginou, e o homem, morto, testemunhou a dor dela tomar às rédeas, onde com uma das mãos ela posicionou o maior dos pregos que encontrou, rente ao coração, e com a outra mão, martelou para dentro. Deixou-se agonizar de dor, sem ajuda, até a morte da noite que amanhecia dentro dela.

Na segunda-feira, o jornal local publicaria a seguinte nota:

Lamentavelmente, no dia 10 de abril, foi reportada a descoberta chocante dos corpos de Francisca, 23 anos, e sua mãe, ambas vítimas de múltiplas facadas no pescoço e região genital, enquanto a mãe também apresentava ferimentos nas coxas e nos peitos. Nas proximidades, Pedro Jaime, namorado de Francisca e inicialmente apontado como principal suspeito, foi encontrado sem vida, com ferimentos nos olhos, peito e barriga, ao lado de Lidiane, prima da vítima, também morta com um prego fincado ao peito.

As autoridades estão conduzindo investigações para esclarecer os eventos. Até o momento, suspeita-se que Lidiane possa ter sido a autora dos crimes, seguido de um ato contra sua própria vida. As motivações ainda permanecem desconhecidas, mas há indícios de que o incidente possa ter sido motivado por razões passionais. A comunidade local está profundamente abalada por essa tragédia, e as autoridades estão trabalhando para obter uma compreensão completa dos eventos que levaram a essa terrível perda.

--

--