Último Capítulo

Ivan Nery Cardoso
Revista in-Cômoda
Published in
3 min readMay 27, 2020

Adeus, livro chato. Sei que prometi que dessa vez seria para valer, que você ia sair da espera na minha fila de leituras e iríamos juntos até o final. Mas infelizmente chegou a hora de nos separarmos.

Foi bom no começo, nós dois nos conhecendo, tímidos, tentando nos decifrar. Sabíamos tão pouco um do outro que o mistério apimentava um pouco as coisas. E tudo que eu já tinha ouvido falar sobre você me deixava curioso, foi o que mais me atraiu a princípio. Todas as boas recomendações que me davam de você; todas as críticas positivas que lia nos jornais; todas as hitórias de que você era uma leitura essencial; todos os relatos de como você mudou a vida de tantos leitores; tudo isso foi o que me fez tomar uma atitude quando te vi de longe na estante, te pegar em minhas mãos e dizer que iria ler de cabo a rabo suas mil e duzentas páginas.

Tudo eram rosas naqueles tempos. Estávamos tão em sincronia nos primeiros capítulos que o mundo parecia não existir: éramos só nós dois e nada mais. Mas depois de um tempo as coisas foram amornando. Você ficava sempre na mesma, não acontecia nada de novo, se fechava no seu próprio mundinho e não me dizia nada com clareza.

A leitura não estava engatando, mas eu não queria desistir assim tão fácil de você, ficava me convencendo de que logo, logo ia encontrar esse lado seu que encantou tanta gente. Mas depois de cem páginas, senti que o esforço para te decifrar não estava valendo a pena e, tenho que admitir, comecei a ficar entediado. Quando estávamos juntos eu até me esforçava, mas acabava te lendo por obrigação, sem guardar informações, pensando apenas quando aquilo tudo ia acabar. Enquanto isso, meus amigos estavam por aí lendo livros deliciosos e já partindo para outros, sempre me dando recomendação atrás de recomendação. E eu sentia vontade de ler outras coisas, mas me controlava para focar a leitura em você.

O problema é que esse desejo, esse impulso, foi ficando mais forte, difícil de controlar. Quando a gente começou a se desentender, acabei indo para um sebo com um colega. Ele estava procurando uma edição específica de um Cervantes e eu acabei indo junto, só para fazer companhia mesmo. Não dei muita bola para todas aquelas lombadas me encarando, mas quando vi, já estava nas mãos de um volume de poesia que me tirou os pés do chão. Aquelas poesias tinham um gingado maroto, uma malemolência que eu não consegui resistir, e acabamos indo juntos para casa. Eu sei que nós nunca firmamos nenhum contrato de exclusividade nem nada, mas eu me senti culpado fazendo isso. Me perdoe.

Ele acabou me levando para conhecer algumas antologias de contos e reuniões de ensaios do mesmo autor. Nós ríamos e nos divertíamos, passava horas com eles, e isso me fazia bem. Enquanto isso, nós dois fomos nos vendo cada vez menos, nos distanciando, o suficiente para criar saudades.

Mas você ficava na mesma. E eu mudei.

Esses livros me ensinaram tantas coisas novas e me fizeram refletir sobre tantas outras que não sei se nós dois ainda combinamos. Não é você, sou eu.

Por isso, acho melhor terminarmos aqui mesmo essa relação que já não está boa. Vamos admitir, esfriou. Mas podemos ser amigos ainda. Se quiser, posso te apresentar uma amiga que está louca para te conhecer. E o aniversário dela está chegando, vai ser perfeito! Quem sabe vocês dois não combinam e a leitura engata logo de primeira?

Adeus, livro chato. Te desejo tudo de bom nessa vida, mas nós dois, me desculpe, não fomos feitos um para o outro.

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