A Epifania de Narciso.
Um conto contra si mesmo.
“Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos.” Heráclito de Éfeso, supostamente.
“Quem, dentro do mundo, ama o próximo não está mais nem menos certo do que quem, dentro do mundo, ama a si mesmo. Resta só a pergunta sobre se o primeiro deles é possível.” Franz Kafka, aforismo 61.
Meu nome era Simon, e de mim é óbvio que não duvido, eu duvido é dos outros.
Eu vejo que eles me olham, mas na verdade é eu apenas que vejo, pois deles apenas percebo a impossibilidade de estarem ali. E para isso, é fundamental ter em mente a minha pessoa, para que assim vocês percebam que dependem unicamente da minha nuance perspectiva. Mas de onde conclui essas coisas?
Fazia tempo que eu duvidava que o mundo não existia, e que de fato apenas eu havia, mas tudo começou quando eu passei a encarar certas pessoas. Primeiramente foi com minha família. Eu os encarava por um longo tempo, e lá eu podia ver claramente um eco de semelhança, mas uma semelhança tão imprópria que me deixava nauseado. Eu percebia que eles estavam perpassados por algo falso, algo errado. Eu via que no centro deles havia eu, e que o mundo em torno distorcia eles para algo que era diferente de mim. Era como se o rosto deles fosse o meu, mas o invólucro havia sido distorcido de tantas formas que eles nem pareciam mais comigo, e só restava esses restos de semelhança.
Lembro da náusea que se instaurou nos meus 3 anos ao encarar a face da minha vó. Pois até mesmo aquela forma decaída e ressecada era eu. Aquela boca arregaçada, os dentes falsos, os beiços secos, aquele cheiro… Tudo aquilo fazia parte de mim. Toda dia que eu ia me escovar eu me deparava com ela de frente para mim, eu de frente para mim.
Desse dia em diante decidi nunca mais olhar um espelho.
Com minha mãe eu tive uma experiência duradoura, pois vivíamos juntos. Com o tempo eu percebi que os limites entre mim e ela estavam sendo invadidos por essa minha certeza única: a de que eles, eram eu. Houve dias em que eu não conseguia encará-la, pois lá eu apenas via um reflexo de mim mesmo. Ela havia se convertido unicamente em um reflexo meu, ou era eu que havia me tornado o reflexo dela? Como posso saber a diferença? Mas há diferença de fato?
Havia dias em que ela tentava conversar comigo, mas eu sabia exatamente o que ela iria falar e isso começou a me deixar angustiado e com um sentimento de solidão. Será que eu sempre estive sozinho?
Era atormentador, mas sempre que eu dormia eu tinha a chance de esquecer. E foi assim que se deu, por anos eu me esqueci de que tudo era eu, e permaneci vivendo em minha própria contingência achando que estava em centrífuga. Mas eu mal sabia que eu só estava escorrendo para dentro do abismo que era a mim mesmo, e nisso eu tinha certeza: a morte ali não era um critério externo e sim interno, e por isso mesmo, eterno.
Nesse grande período de esquecimento, eu me apaixonei.
Era uma linda garota que eu conheci em um café. Ela tinha longos cabelos pretos e olhos tão belos que me lembravam o céu. Naquele momento eu não sabia, mas eles eram o céu mesmo.
A gente viveu um romance intenso, o qual acabou tão rápido quanto começou. Tudo se deu em uma tarde ensolarada em um parque aonde estávamos sentados. Foi lá que eu tive a péssima ideia de encarar os olhos dela por muito tempo. Quando isso aconteceu, o mundo inteiro foi posto em epoché. Tudo no em torno começou a derreter que nem cera, e a escurecer repentinamente. Eu vi ela, de muito profundo. Vi tão longe, que o véu de Maya se rompeu: eu vi além das distorções da realidade, e lá eu vi algo eterno: eu vi a mim mesmo dentro dela. Quando eu percebi o que eu via, eu comecei a tremer. Eu havia lembrado. Tudo até ali havia sido apenas a mim!? Tudo o que eu havia dito e ouvido era apenas um monólogo!? Porque estou condenado a mim mesmo!?
Eu corri bastante, eu corri para muito longe. Eu nem mesmo posso dizer que nunca mais vi ela, porque no fundo eu sei que eu vejo a mim mesmo ainda. Mas mesmo que eu corresse, eu sabia que é impossível fugir de mim mesmo, e minhas sombras berram isso em minhas costas.
Eu vejo tudo, mesmo não vendo nada.
Eu me escondi em uma caverna em uma distante floresta, a qual me vi dentro depois de correr até a exaustão. Fechei os olhos por muito tempo, mas vi que não tinha muita diferença. Eu sustentava a esperança de que se eu me abreviasse o suficiente eu poderia simplesmente deixar de existir.
Caminho naquela caverna que também era Simon, como eu e qualquer outro.
Mas ali tudo está escuro, suficientemente escuro para mim poder acreditar que não há efetivamente nada ali; além de mim.
Percebe que eu não posso sentir saudade?
Eternidade, eternidade, eternidade, eternidade. Escuridão.
Quando eu era menor e ainda não havia dormido, eu percebi que eu era todos aqueles que eu via. Lembro de caminhar pela rua numa tarde ensolarada e quente; de ter que esperar na frente de uma loja de roupas e de enxergar o outro lado da rua. No outro lado da rua eu vi a mim mesmo olhando para mim mesmo.
Naquele momento parecia que toda rua era um espelho de frente para o outro, e eu me vi pelos meus olhos, mas naqueles que eram meus e também não eram, ao mesmo tempo. Vi que tudo aquilo se tencionou em minha direção e eu me vi sendo tudo.
Realmente, se eu fosse eterno, eu iria querer ser todas as possibilidades. Ah é. Como sou tudo eu não morro, e sou todas elas.
Eu me alimentava de mim mesmo em minha caverna.
Lembro de um filósofo que uma vez disse que tudo e nada eram um e mesma coisa. Eu concordo, eles eram eu. Um eu eternamente sintetizado e preso em si. Um eu que trata e ilude os outros para que estes achem que são algo além dele mesmo. Um eu estupido que engana a si mesmo, e que agora sofre as consequências de seu próprio suicídio.
Como é que se mata Deus?
Se sou tudo, eu mesmo mato a mim mesmo sempre? Mas se sou tudo eu também sou aquele que eternamente nasce e morre, simultaneamente. As pessoas morrem em mim que nem as células morrem em você.
Há uma harmonia gigantesca de respirações que se perdem em últimos suspiros e em choros de bebês cheios de placenta. Eu sou a parede do útero, a uretra, a partícula de neurônio, a fibra muscular, o cálcio, o fiapo mais estranho em seu corpo. Eu sou seu corpo.
Sou aquele que sendo o que sou, estou preso em mim mesmo.
Cravei minhas unhas em meu estômago e abri minha barriga. Meu coração estava coçando, eu precisava coça-lo, eu era a coceira que se perdia. Fui caminhando para fora e encontrei meu sol fora da caverna. Veio-me a virtude, a vitamina D, os fótons, eu mesmo.
Respirei, meu sangue quente misturava-se com meu sangue coagulado em terra. Era quente os raios que se chocavam em mim, como também o sangue que escorria pela minha virilha e o calor pulsante de minhas entranhas, pois ambos eram um e mesma coisa.
Coçava e coçava, mas meu coração estava afundado demais em minhas costelas e eu não alcançava-o. Eu ia caminhando, perdendo-me em mim mesmo para reencontrar-me definitivamente.
Quando minha unha por fim encostou nele eu cai de joelhos, havia um grande e silencioso lago em minha frente.
Com ela, fui raspando aos poucos o tecido de meu coração enquanto o sangue jorrava pela minha mão e braços. Arrastei-me um pouco mais adiante, e pela primeira vez na vida eu me surpreendi. Ali senti dor pelo primeiro momento. Ali eu te percebi.
O lago estava profundamente calmo, tornando sua superfície um espelho, e lá eu vi a mim mesmo. Mas eu não sabia quem eu via.
Como aquele que eu tanto via em tudo poderia não ser aquele que era a mim mesmo? Como posso ser algo que nem mesmo eu sei que sou? Como posso ser um estrangeiro perdido dentro de mim mesmo? Mas quem sou eu? Como posso me reconhecer sem nem me conhecer?
Foi nesse momento que Ele percebeu. Ele que me percebeu. E Eu que percebi Ele.
Ele de joelhos, me viu, e sorriu de canto. E enquanto sangrava as últimas gotas ele derramava algumas lágrimas. Seus cabelos banhados tanto pelo sol como pela água brilhavam e refletiam tudo. Ele, um pouco antes de morrer, percebeu tudo aquilo que havia acontecido, e viu que não estava errado, percebeu que de fato estava correto acerca de tudo, e que seu erro foi acreditar de mais em Si mesmo.
O erro dele foi acreditar demais em seu nome, e por isso mesmo ele se perdeu. Eu estava até então, perdido. E na verdade, o Si se desfez agora, perdido naquela última lágrima. E com ele leva o sentimento de euforia e o calor da intensidade de um sol que não é dele, sendo.
Seu cabelo balança em ressonância com a água, e alguns fios se despendem e se perdem na calmaria ondular da lagoa, aonde no fundo encontram um peixe perdido. Seu sangue então escorre, sendo ressecado e mesclado com a grama e terra da borda desse lago. Daqui um tempo, sua proteína voara aos céus, e seu carbono também. De seu cranio vai nascer uma flor, e essa flor será polinizada por algumas abelhas. Uma borboleta pousa no topo de uma graminha que nasceu aonde era seu coração.
Ele achou que o mundo era ele, mas na verdade ele era o mundo. Só que ele, nunca havia sido Eu, pois no delírio de uma borboleta, eu ainda existo.