A GENTE TÁ SEMPRE RUMANDO PRO PASSADO

Gabriel Schincariol Cavalcante
Revista in-Cômoda
Published in
5 min readJan 9, 2018

--

walt disney

8–1–18, sp (brás)

Meu pulso direito dói e me lembra que eu abandonei a fisioterapia na quarta sessão de dez e as últimas seis fazem falta. Tenho o livro do Fitzgerald à minha frente, mas não o leio. Meu pulso dói e eu abraço e fecho a mão, repetidamente. Hoje não quero a companhia de Amory, porque chove e aqui tem muitas vozes se abrigando da chuva e eu me sinto sozinho e cansado e é só o primeiro dia.

Talvez a dor e a falta de interesse no livro estivessem claras e aparentes. O homem pesado de macacão sujo e barba grisalha se sentou ao meu lado e me disse boa tarde, e disse boa tarde ao chapeiro e lhe pediu uma dose conhaque com limão, e, de novo para mim, perguntou: que é este compêndio literário? Mostrei a capa a ele e ele disse muito bom, e eu sorri sem mostrar os dentes, soltando o ar pelo nariz, pensando que é que sabe você?, mas logo me repreendi, estúpido. Desculpa atrapalhar, ele disse. Que nada, eu respondi.

*

Quando a luz acabou e voltou por causa do forte temporal, as luzes não se ligaram. Desligamos e ligamos os disjuntores, mas nenhuma lâmpada acendia. Todos os computadores estavam ligados, as impressoras faziam seu barulho característico de iniciação, os toners sendo testados, as esteiras voltaram a correr, os rolos de papel se desenrolando, a tinta marcando o papel amarelado com a nova edição de um clássico. Mas as luzes não se acendiam de jeito nenhum.

Vou ligar para a manutenção, alguém disse, e ninguém respondeu.

Minutos depois apareceu o homem pesado de macacão sujo e barba grisalha, caminhando bem devagar. Cumprimentou a todos, estendeu a mão, deu um sorriso.

O que aconteceu?

As luzes não acendem.

E já desligaram os disjuntores?

Já, mas não adiantou.

Ele se virou, abriu a portinha da caixa de energia e começou a mexer lá com seus dedos grossos, gordos, sujos de graxa. Todo mundo parou o que estava fazendo para ver o que ele fazia. De chinelos, macacão sujo, ele enfiava a mão nos fios, puxava um, puxava outro, cutucava um parafuso, desligava um interruptor. Umas faíscas saíram da caixa e alguns de nós se assustaram, mas ele apenas afastou o rosto e depois voltou a se aproximar. Apertou um interruptor e as luzes foram se acendendo ao seu modo, algumas piscando, outras mais fracas. Logo toda a gráfica ficou iluminada.

Que era?, perguntou quem ligou para a manutenção.

Jeitinho, ele respondeu, dando uma gargalhada depois, um tapa no ombro de quem fez a pergunta, e se virou para ir embora, espiando os rolos de papel nas esteiras.

*

Ele tomou metade do copo e um gole e não era uma hora da tarde ainda. Eu fechei o livro. Você viu o tema da fuvest?, ele disse.

Fiquei sabendo, respondi, disfarçando a vontade de rir com escárnio.

Os limites da arte, ele falou, sem ser uma pergunta.

É, eu disse.

Curioso, não?

Bastante.

O que você acha disso? Sua voz era rouca, a garganta feito um ralador que ia castigando cada palavra.

Dei de ombros. É complicado. Tive muitas conversas com bêbados e não queria ter mais uma e meu pulso dói.

Ele virou o resto da bebida em seu copo, lambeu os beiços e olhou para mim. Eu fico pensando, estava lendo sobre Da Vinci, que foi muito a frente de seu tempo, e eu imagino se ele acorda hoje e se levanta e começa a andar pelas ruas aqui do Brasil e vê essa discussão. Qual o limite da arte? Hoje, em 2018, Da Vinci não saberia em que ano estaria, eu acho. Não fossem os carros, não fossem os prédios, não fossem os sons, talvez ele não repararia que tantos anos se passaram desde que ele fechou os olhos pela última vez. Em 2018, imagina.

Senti um misto de admiração e receio. Receio, porque aquele papo parecia o papo que eu ouvia do meu pai quando bebia, aquele papo galanteador, aquele papo charmoso, mas vazio, fabricado. E a admiração, porque tudo nele indicava num caminho oposto de suas palavras. Um oximoro perfeito. Parece que nós estamos sempre rumando para o passado, eu respondi.

Parece que estamos sempre rumando para o passado, ele repetiu. É isso, e ele apontou para mim, dizendo parabéns. É isso, estamos sempre rumando para o passado. De vez em quando tem gente feito Da Vinci que tem força suficiente para mudar o rumo da coisa, mudar a proa. Vê essa tatuagem? Ele mostrou o antebraço com uns riscos verdes que pareciam formar uma cobra. Fiz em plena ditadura militar, artesanal, igual de cadeia, representa a FEB, força expedicionária brasileira. Os pracinhas foram para a itália e ninguém nunca deu nada para eles, nem o Brasil, nem os americanos, nem ninguém. Mas eles tinham força suficiente para mudar o rumo da coisa. E eles acreditavam nisso, e eles foram para cada batalha acreditando nisso, e quando acabou a munição eles tinham a coragem. É isso que significa para mim. Acreditar na coisa. E mudar seu rumo.

É como a arte, eu acho. Mudar o rumo assusta.

Ele sorriu, faltavam-lhe a maior parte dos dentes do fundo. Quando a gente não entende, a gente condena.

Eu sorri de volta.

Ele me estendeu a mão e eu a apertei, e seus dedos grandes, fortes, gordos, sujos de graxa envolviam meus ossos e senti meu pulso feito rasgado, arrancado, mas não soltei sua mão.

Desculpa qualquer coisa, ele disse.

Que nada, respondi.

Um prazer, ele disse, e se levantou com seu corpo grande e pesado, a barriga estufada no macacão, e saiu do bar caminhando lentamente sob a chuva fina, os pés molhados no chinelo velho.

Meu pulso dói enquanto vejo esse homem enorme se afastando de mim, enquanto suas costas enormes vão ficando menores conforme ele fica longe, longe, até desaparecer. É um homem enorme, e eu penso que ele é enorme, mas esse corpo enorme aprisiona muito pouco do que ele é. Esse corpo enorme esconde algo de maior ainda, que eu só vi de relance e quase não notei porque estava distraído com o conhaque.

Não é nem uma da tarde e meu pulso dói, chove e é só o primeiro dia de 2018.

--

--