A HISTÓRIA DESSA ENCOMENDA AMARELA

Gabriel Schincariol Cavalcante
Revista in-Cômoda
Published in
7 min readMar 18, 2018

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MDN

15–3–18, sp

Quando a encomenda foi depositada, coberta pelo seu sério papel amarelo inscrito a mão na caligrafia mais sóbria e séria perpetuada em tinta azul, na agência dos correios, a funcionária pesou a caixa, imprimiu a etiqueta, colou sobre o papel pardo, recebeu os trinta e dois e oitenta, devolveu os dezessete e vinte, que as mãos de dedos finos tomou e pôs no bolso da calça preta. Ela tirou a encomenda do balcão, colocou no chão ao lado de outras caixas, levantou a plaquinha de Dirija-se a outro caixa e disse Vou fumar um cigarro, e seu colega acenou com a cabeça em reação, e alguém na fila disse Era só o que me faltava, mas não se ouviu mais nada. E enquanto ela fumava um cigarro mentolado o homem que depositou a encomenda caminhava para longe com sua silhueta magra nas calças pretas e na camisa branca que era bem ajustada ao seu corpo, bem por isso denunciava sua magreza, seu corpo de bambu, e ele caminhava para longe e ainda mais longe, oitocentos e alguns quilômetros mais longe, na ruazinha de Nossa Senhora dos Caminhos, a destinatária da encomenda unia suas mãos pálidas coladas ao peito, que parecia enorme e apertado, e espiava pela janela da casa 7 se o carteiro não vinha vindo.

*

A encomenda sobre a mesa da sala era encarada com a seriedade de um crítico de arte. Ele olhava para a encomenda com deferência e distância e respeito e fascínio, como se olha para uma pintura que carrega em si o peso da criação artística. Como se aproximar de uma criação artística para apreciá-la em sua plenitude? É preciso desarmar-se e ir com cuidado, zelo, carinho, para receber tudo o que a obra tem a oferecer, e, também, entregar a ela toda a sua percepção, para formar uma simbiose que, só dessa forma e nenhuma outra, proporcionará ao observador calçar por um ínfimo instante os calçados do criador, para depois nunca mais. Todo o resto deve ser deixado para trás, por um instante. Era o que ele fazia encarando a encomenda. Tinha as mangas da camisa branca dobradas duas vezes sobre o fino antebraço e os finos dedos médio e indicador da mão direita pousavam sobre o lábio rosado e seus olhos estavam cerrados e a sua mão esquerda segurava o seu cotovelo direito. Ele encarava a encomenda à distância.

Pegou o papel amarelo e se aproximou da encomenda devagar, cobrindo-a com carinho, dobrando o papel nas pontas com seus dedos finos e firmes, delicados e seguros, fazendo um sério e sóbrio embrulho que não se confundiria com a encomenda e cumpriria, tão só e somente, a função de embrulhar, mas era uma orientação clara, o embrulho deveria ser amarelo, era importante que ele fosse amarelo, outra cor não podia ser. Embrulhou e selou o embrulho. Pegou a caneta azul na mão, escreveu o nome da destinatária e se sentiu estúpido inscrevendo ruazinha de Nossa Senhora dos Caminhos, número 7, sobre o papel pardo, mas no seu ouvido ressoava a voz dizendo que era preciso escrever exatamente assim, ruazinha, inha mesmo, que de outro jeito não chega, de outro jeito não vem até aqui, é ruazinha de Nossa Senhora dos Caminhos, ruazinha com erre minúsculo e Nossa Senhora dos Caminhos com o ene e com o ésse e com o cê, maiúsculo.

Lá longe ela já esfregava as mãos, nervosa, e sentia a umidade na palma, nos dedos, no pulso. Sentava, batia o pé, levantava, andava de um lado para o outro, e a encomenda não estava nem a caminho e, estando a caminho, ainda tinha muito chão a percorrer, mas não tinha problema, ela sentia o peito bater como se fosse logo ali, no próximo instante ouviria as palmas do carteiro e pegaria a encomenda nas mãos.

*

No banco do passageiro o rapaz dormia, e o motorista dirigia com uma só mão no volante do caminhão, a outra apoiava a cabeça, com o cotovelo na porta. O caminhão do Correios ia pela estrada sem muito movimento e lá na frente tudo ficava ondulado pelo forte calor e o sol intenso que deixava a cabine quente. A testa do motorista suava, e ele limpava com as costas da mão esquerda.

Sentiu um solavanco lá atrás e o rapaz acordou, querendo saber o que é que tinha acontecido, os olhos inchados e a mão à frente do rosto para se proteger do sol. Sei lá, alguma coisa lá atrás. Vai encostar? O motorista pensou um pouco e sentiu a trepidação. Vou. Que horas são? Duas. Falta quanto? Duzentos e cinquenta. Virge. É.

Encostaram e antes que eles descessem o carro preto parou atrás deles no acostamento, desceram três de cabeça coberta e as escopetas na mão, e um olhou para o outro e nenhum disse nada. O rapaz parecia ter perdido a cor e o motorista respirou fundo, irritado.

Desceram com as mãos para cima sob o comando dos homens encapuzados, era a terceira vez em um ano que o motorista passava por isso e já conhecia o roteiro. Foram para fora da estrada, o rapaz tremendo e suando e o motorista com a testa molhada por causa do maldito do calor, e dois homens ficaram no caminhão e um voltou para o carro e logo foram o caminhão e o carro embora pela estrada. Vou ligar pra central, disse o motorista, tirando um cigarro do bolso e oferecendo para o rapaz, que não fumava, mas aceitou.

Oi, é o Cléber. Roubaram a gente. Pois é, mais uma vez.

*

Passou o dia perto da janela, puxando a cortina de dez em dez minutos e até sentiu o coração florescer quando o carro do Correios veio descendo a rua, mas murchou conforme ele passou reto e seguiu embora.

*

A viatura seguiu pela estrada de terra e foi acompanhando o caminho pelo mato que estava todo destruído pelas rodas do caminhão. Andaram uns bons vinte minutos mato a dentro até chegarem no caminhão sem uma roda, com as portas traseiras abertas. Um policial desceu e o outro ficou na viatura, falando no rádio.

As caixas mais ao fundo estavam lá ainda, mas boa parte da carga havia sido levada. O policial acendeu a lanterna e mirou nas caixas restantes, e foi olhando uma por uma, caídas uma por cima da outra. Voltou para a viatura e esperou o colega terminar de falar no rádio.

Tão vindo, o colega disse.

Deixaram umas caixas, quer dar uma olhada?

O colega saiu da viatura e acompanhou o policial até o caminhão. Os dois subiram e olharam os remetentes.

Quanto tempo?

Ah, tão saindo agora, uma meia hora.

Tudo o que não era nem muito grande, nem muito pequeno, e tinha como remetente uma loja famosa eles pegaram e colocaram no porta-malas da viatura. Ainda bem que trocaram por essas SUV, hein? O outro riu. Pegou a encomenda amarela na mão, chacoalhou, não vinha de nenhuma loja, olhou o nome do remetente, não ficou muito satisfeito, olhou o destinatário e gritou para o outro: olha só essa merda, ruazinha de Nossa Senhora dos Caminhos, que que será que tem nisso?

Larga essa merda aí, a viatura já tá cheia, e ele largou a encomenda amarela sobre as outras que não tinham sido roubadas nem na primeira, nem na segunda vez, e agora tinha a sua terceira chance de chegar ao seu destino.

*

Mas o senhor colocou como eu disse, ruazinha de Nossa Senhora dos Caminhos?

Coloquei, sim, senhora.

Mas com o erre minúsculo e o ene e o esse e o cê maiúsculos?

Coloquei, sim, senhora?

Qual número?

Número sete.

E embalou?

Embalei, sim, senhora.

Qual cor?

Amarelo.

Certeza?

Tenho.

Mas não chegou.

Deve estar chegando.

Mas já era pra ter chegado.

Mas deve estar chegando.

E se não chegar?

*

Já foi separando as encomendas por destino e quando ergueu a caixa com embrulho amarelo e leu o destinatário, colocou bem no fundo da van, porque a encomenda ia acompanhá-lo durante todo o trajeto e só no final, com o dia caindo e o sol laranja que ele ia passar pela ruazinha de Nossa Senhoras do Caminho.

*

Quem é que nunca esperou por algo que, depois de tanto tempo, parecia não vir mais? A gente está é sempre esperando o próximo dia, que virá para iluminar o que é escuro e limpar o que está sujo e aumentar o tempo para quem está atrasado. É isso que mantém o fio da vida inteiro, sem se romper, a esperança de que tem algo por vir e a desesperança de nunca chegar, essa antítese constante da fé e do desespero. De se deitar com o coração destruído e acordar sem nenhuma outra alternativa, senão seguir. Quando se realiza um sonho, sonha-se o próximo e assim se vai, ou se está morto, mortinho e enterrado sem mais nada a fazer a não ser fechar os olhos para sempre. Ainda que o sonho seja o fim do dia de trabalho para chegar em casa e tirar os sapatos ou escrever linhas que transcendam o curto tempo da vida ou receber a encomenda que a tanto espera chegar. A gente vai engatinhando, depois vai andando, depois vai correndo, depois vai se arrastando, e a linha de chegada não chega nunca e é assim que tem que ser, porque o que é que a gente tem depois do fim? A vida é recomeço e recomeço e recomeço e recomeço até não ter mais por onde começar e, enfim, dormir. Ela sentia que estava no fim, e seu corpo estava fraco e suas mãos úmidas e seu peito acelerado e seus olhos secos. Mas ela se levantou e foi até a sala só mais uma vez, uma veizinha só.

Colocou a cabeça próxima ao vidro e viu. Viu o carro amarelo que vinha vindo, e viu ele estacionar em frente à sua casa e dele descer o homem de camiseta amarela e parar em frente ao seu jardim de flores amarelas e nas mãos ele carregava um embrulho que parecia mais amarelo do que o amarelo, amarelo contagiado pelo sol, pela roupa, pelo carro, pelas flores, era tudo de um amarelo só, e ela abriu um sorriso enorme e antes de sair correndo para receber a encomenda, foi ao banheiro, abriu a torneira e lavou bem as mãos.

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