A menina nasceu de uma árvore

Izabel da Rosa
Revista in-Cômoda
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5 min readJun 23, 2021

(texto do livro “A moça do outro lado do mar” em revisão pela autora)

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Kika tinha quatro anos quando percebeu a própria situação. Animais e crianças tinham mãe. Ela não.

Os gatinhos tinham mães ensinando-os a comer, lambiam seus pelos para limpá-los, se irritavam se Kika os pegava. Os cachorrinhos brincavam juntos da mesma mãe. Até os bezerros tinham a sua. Ela os via berrarem quando se afastavam delas. Os filhos dos empregados comiam e brincavam juntos, e, assim como ela, dormiam no quarto, grande de paredes brancas. Seis crianças de idades variadas na primeira infância.

Kika tinha comida, alguém lhe dava banho, a colocavam para dormir, mas não chamava ninguém de mãe. “A tua mãe morreu. Ela nunca viveu na fazenda. Não sei como você veio parar aqui.” E Kika, que depois descobriu se chamar Florita de Jesus, cresceu assim, sem saber de onde vinha e como viera parar no interior da Bahia. Nunca soube nada sobre o seu início.

Às vezes tinha alguns sonhos. Era parte de uma árvore de casca fina. Um ramo começou a se projetar em direção ao solo, uma fresta se abriu e ela, menina da cor da casca do flamboyant colocou seus pés no chão. Logo saiu caminhando. Não havia muito tempo para fraldas e mamadeiras. Era sozinha no mundo, precisava se alimentar de frutos, de milho e de sopas ralas, achar seu lugar no mundo.

Em outras vezes, o sonho a trazia da água do rio. A cesta pequena balançava uma menina embrulhada em rosa, os olhos espiando a margem, o corpo pronto para o primeiro colo que a quiser receber. Esse sonho tinha abraços, mamadas no seio da mãe, banhos e passeios na grama, quando os pés descobriram o equilíbrio. Depois havia uma porta. A escuridão densa e dura a engoliu. Acordou anos depois, na fazenda.

Ela não questiona os sonhos. Eles não querem dizer nada. O importante é vencer o trabalho na colheita, completar as tarefas de limpeza nos arredores da casa grande onde os patrões escutam música e dormem. Depois a esperada hora de estender o corpo exausto no quarto dos fundos. Folheia livros com figuras porque não sabe ler até a chegada do sono.

Passou a gostar cada vez mais dos trabalhos ao ar livre. Chamou a atenção dos trabalhadores contratados, se apaixonou por um deles e se tornou mulher. Fugiu com ele aos dezesseis anos. A vida tinha um recomeço.

A filha Soraia chegou, com seus olhos vivos e a pele clara como a do pai. Ele partiu depois de dois anos. Florita e Soraia continuaram juntas na periferia da cidade grande. Agora Kika entendia como era ter uma mãe, desempenhava o seu papel e o brilho dos olhos da filha era a sua recompensa. O trabalho pesado de limpeza, o aprender a ler nos livros da menina. Dividiu além do saber, as conversas, os conselhos que a vida lhe trouxe. Viu as pernas da filha ficarem compridas e suas palavras sábias.

Florita ainda era a filha sem mãe emanando uma energia boa ao seu redor. Recebiam comida e roupas das vizinhas, em troca da ajuda com as crianças das outras famílias, no final do expediente. Todos podiam contar com elas. Os sonhos de Florita, agora traziam a filha com boas roupas, um emprego bem remunerado, uma casa em um bairro decente.

Trinta anos depois, Soraia fecha o computador. Chega por hoje. O cansaço reforça o desânimo. Apesar de estar a meses empenhada na pesquisa genética e genealógica não descobre nada a respeito da origem da mãe. O seu sonho era feito de descoberta, de passado e de futuro. Queria dar esse presente para ela. Um início onde não houvesse árvores com cascas se abrindo, rios trazendo crianças em cestas. Porém não encontra pessoas com quantidades significativas de DNA com ela nos sites de laboratórios. Os exames são realizados por pessoas de renda mais alta. A família originária da mãe deveria ter sua origem humilde, não estava representada naquelas amostras.

E a pergunta continuou, como Florita foi parar na fazenda? Soraia tentou contato com os filhos do proprietário, atuais donos agora. Nem quiseram ouvi-la. E Soraia via as fotos deles nas redes sociais em festas, viagens, comemorações. O que importava para eles uma pessoa da cor da casca de uma árvore?

“O médico foi enfático. Depressão. Você precisa parar com as pesquisas, Soraia. São fontes de sofrimento. Pense na sua família, seus filhos.” E ela parou por seis meses. Falava com a mãe diariamente. A conversa de além-mar, possível devido ao avanço tecnológico, permitia a interação com o genro e os netos também. Eles gostavam de ouvir o português da avó. Soava como música, semelhante ao batuque da Bahia, onde eles tinham nascido e que visitaram uma vez. Agora falavam inglês na escola e o ano tinha muitos meses de inverno, na cidade do interior da Inglaterra.

Florita entendeu que a filha desistiu da pesquisa, não houve necessidade de palavras. Os sonhos do bebê cheio de sorrisos navegando pelo rio voltaram a ser frequentes. O nascimento no caule do flamboyant, agora acontecia em um ramo pesado pelas flores. Depois do inverno seus pés surgiam como se desabrochassem também. O corpo se desenhava até ela se tornar um ser da cor dos ramos e caminhar vestida de primavera. A vida era boa, apesar de estar longe da família da única filha. Não gostava da tristeza de Soraia, sorria o sorriso dos netos, nas conversas de todas as semanas.

Durante sua pesquisa, Soraia soube da história de Kaleo, de Nyora, de Raabe, de Rebecca e de muitos outros. E decidiu ajudar. Se as respostas não vinham para a sua mãe, talvez ela pudesse usar o que aprendera para ajudar esses jovens também surgidos do nada. Embarcaram em um avião no Brasil e pousaram em terras estrangeiras. E Soraia fez campanhas de arrecadação, comprou kits para exames de DNA de mães em busca dos filhos, deu dicas e orientou pesquisas. Um dia seu caminho se encontra com o de Lisa e esse encontro mudará muitas vidas.

(Livro a ser lançado em breve)

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Izabel da Rosa
Revista in-Cômoda

Eu não tenho os pés no chão tenho uma ânsia de asas entregues à correnteza das palavras que me visitam e contam coisas que só sabem os que sentem.