Acrilic On Canvas

mariogarciajr
Revista in-Cômoda
Published in
5 min readFeb 20, 2017

Abro os olhos como quem liga a tevê. Fecho os olhos tentando te ver. Abro os olhos procurando você. Fecho os olhos para esquecer. Não quero. Abro os olhos para ver se consigo entender. Fecho as janelas para parar de chover. E espero. Mas parece que vai ser um daqueles dias em que chove em algumas horas o que estava previsto para o mês inteiro.

Tipo eu quando te conheci. Te amei em poucas horas o que estava previsto para te amar durante a minha vida inteira. Um exagero. Em uma experiência quase científica, consagramos o método de tentativa e erro. Mais tentativas do que erro. Sem medo. Mas ainda assim, cedo, cedo, cedo.

Tipo eu pintando os meus quadros. Quero jogar na tela em um segundo todas as ideias de um ano inteiro. Tintas acrílicas em atrito provocando desespero. E do desespero ao desenho. E do desenho ao receio. E do receio ao desejo. De encontrar o traço certeiro que almejo. O mesmo que nunca vejo antes de começar a fazê-lo. Em aceno rabiscado. Carvão, tinta e tela misturados. Sem sincronia ou cuidado. Apenas tato. Mão, pincel, rastros desastrados em movimentos abstratos. Quase dissimulados. Quem dera, inspirados.

É só saudade. Eu sei. Mas quando ela vem de verdade. Parece que eu não sou, não sei. Não tenho mais o tempo que passou. Mas tenho muito tempo. Que para se afastar de tudo o que ficou, é sempre muito lento. Infelizmente tenho todo o tempo do mundo. Porque sem você, preferia estar moribundo.

Levantei em um segundo. Respirei fundo. Preciso colocar essa dor para fora. Preciso extrapolar minha fúria agora. Com dores e tintas em traços de história. Estátuas e cofres e paredes pintadas. Nada no meu estúdio tem mais graça. Nada parece estar no mesmo lugar. A não ser o cavalete, a tela e o pincel. Esperando para virar maremoto, terra e céu.

Numa rajada de atitude, afio a ponta do lápis com o estilete. Num descuido rude, deslizo a lâmina cortante na pele. Um fio de sangue risca meu dedo. Goteja na aquarela. Desenha um rio. Desagua em cachoeira. Vira tinta que brilha acrílica. E me inspira. Aperto a carne para o sangue descer mais rápido. Aumento o corte ao máximo. Preciso de quantidade. Quero tudo de uma vez. Mesmo que tenha que pagar com minha própria invalidez. Vou pintar você até morrer. Como se fosse um mantra. O desenho mais perfeito que se fez. Blood acrilic on canvas.

Vou costurando a minha tela com pedaços de lençóis que não chegamos a sujar. Esticando as dobras, desdobrando as sobras do que era para ter sido o nosso lar. A armação eu vou fazendo com a madeira da janela do que era nosso quarto. Vou esculpindo a paleta e o cavalete com taliscas que roubei do portão da casa. E continuo enchendo copos e vasilhas com o sangue que não para, ainda vasa, nunca acaba.

Vou destilando óleo de linhaça com as lágrimas sinceras que nunca brincaram com você. E com raiva no olhos e tinta de glóbulos vermelhos na mão, não consigo parar de te querer. Corro até a nossa antiga cama, arranco pedaços de estrado e vou talhando em estiletes de tamanhos diferentes, grandes, pequenos, grossos, rentes. Para rasgar as memórias restantes e persistentes que estão despedaçando a minha mente.

Do banheiro, saio colando fios, chumaços, pedaços inteiros de pelo para fazer um pincel com os seus cabelos. Roubo um batom antigo, corro de volta para o meu suplício, marco pontos de fuga, rabisco um horizonte e penso que já não há mais ponte que me ligue ao que fomos. Que me leve aos primeiros anos. Que promova de novo o nosso encontro.

Copio os traços de tudo o que não aconteceu. Preciso de mais sangue porque tudo aquilo foi o que mais nos acometeu. Escolho as cores entre as tintas que inventei e que sigo colhendo das minhas próprias veias pelo dedo já roxo que cortei.

Misturo os pigmentos com a promessa burra que fizemos de um dia sermos três. Trabalho cada traço em luz e sombra, alisando sua pele, lambendo sua tez. Lembro do que fiz. Instigo a insensatez. É como te ouvir chorando de novo pela porta do banheiro fechada. Enquanto grito em desespero pela sala: Não foi por mal. Eu juro que nunca quis deixar você tão triste.

As lembranças me abraçam e insistem. Me calam e se reprimem. Me acalmam e se desentendem. Eu usava sempre as mesmas desculpas. Enquanto você dizia que desculpas quase nunca são sinceras. E jurava que cada promessa não cumprida era uma quebra. Que a escultura de nós dois estava rachada demais. Que não aguentaria mais uma queda.

Todo artista acredita que às vezes é só improvisar e o mundo vira um livro aberto. Mas sempre chega o dia em que tentamos ter demais e acabamos vendendo fácil o que não tem preço. Só tenho o que ficou. E sei que tenho sorte até demais. Sei que você tem também. Porque era sempre, sempre o mesmo, a mesma traição. E isso não se faz. Você merece paz.

Mas é tão difícil de esquecer. Alguém toca a campainha e eu vou atender. Suando, sangrando, pálido. Abro a porta rápido. É o carteiro. Ele lê seu nome numa correspondência e sorri. Sinto muito, ela não mora mais aqui. Mal consigo voltar ao estúdio. Estou fraco, tonto, estúpido. Rodopio e caio no corredor. Me arrasto passando por cima de minha dor. Alcanço a ponta da cortina pelo chão. A mão ensopada de sangue, a cabeça transbordando de ilusão. Ninguém sofreu. É só você que provoca essa saudade vazia, insistente e fria, que aniquila a minha razão. E continuo tentando pintar flores com o nome infeliz de amor-perfeito e não-te-esqueças-de-mim.

Uma parte de meu corpo ainda quer viver.

É a parte que me sustenta e me levanta.

Vou pintar você até morrer.

Como se fosse um mantra.

Seu desenho mais perfeito ainda está por se fazer.

Em traços de uma memória que sangra.

Blood acrilic on canvas.

--

--