Anos de Chumbo

Isac Chagas
Revista in-Cômoda
Published in
4 min readDec 3, 2021
Photo by Anne Nygård on Unsplash

“Eu devia estar contente
Porque eu tenho um emprego
Sou um dito cidadão respeitável
E ganho quatro mil cruzeiros
Por mês.”

Ouro de Tolo” — Raul Seixas

Eram quinze pras uma.

Minha face estava apoiada no dorso da minha mão esquerda enquanto eu saboreava, indolentemente, o restante do meu Cheddar McMelt. O desânimo era pelo fato de que, em quinze minutos, eu deveria estar de volta ao trabalho. Eu estava tão exausto que, se eu tirasse um cochilo naquela mesa engordurada, nem mesmo as atendentes bradando em alto e bom som os números dos pedidos dos clientes, seriam capazes de me acordar.

Eu estava enganado pois, em poucos segundos, uma voz que esbravejava furiosamente, encheu todo o salão e fez com que eu ficasse atônito. Não consegui entender, imediatamente, o que estava acontecendo: a única coisa que me lembro, é que palavras como “comunismo”, “banheiro” e “pouca vergonha” foram vociferadas. Algum apelo de cunho moralista, que zelava pela integridade das crianças, também foi feito.

Durante o trajeto de retorno para o trabalho, eu estava tão absorto em meus pensamentos, tentando processar tudo o que eu havia acabado de presenciar que, quando percebi, eu já estava em frente ao elevador, digitando o número correspondente ao andar. O elevador levou tanto tempo para chegar ao térreo que, por um momento, cogitei fortemente a possibilidade de subir de escadas. Quando o elevador finalmente chegou, antes d’eu entrar, segurei a porta para que as mulheres pudessem entrar primeiro. Quando entrei no elevador, toda a minha atenção foi automaticamente direcionada para as notícias que estavam sendo exibidas na TV do elevador.

Simplesmente eu não podia acreditar no que eu estava vendo! De longe, era o maior absurdo que eu estava presenciando naquele dia — e olha que, em menos de quinze minutos, eu havia escutado alguém dizendo que uma das maiores redes de fast food do mundo compactuava com o comunismo!

Atualmente, no Brasil, há uma estimativa de que 19 milhões de brasileiros estejam passando fome. Tal situação é consequência da crise econômica e do avanço da pandemia no país. O desemprego no Brasil é o dobro da média mundial: estima-se que há cerca de quase 14 milhões de pessoas que estejam sem emprego — sem mencionar o fato de que, recentemente, atingimos a marca de 614 mil mortes em decorrência da Covid-19. Levando em consideração todos estes recordes alarmantes, que denotam uma crise política e econômica e uma situação de apavorante vulnerabilidade social, não me parece uma boa ideia a instalação de um monumento que impulsiona a potência do mercado financeiro e a ascensão da economia — nada que esteja em convergência com a situação atual do Brasil. Alguém sabe como mudar o canal de uma televisão de elevador? Eu realmente deveria ter subido de escada.

No decorrer da tarde, alternava os meus pensamentos com os PROCVs e com as minhas despretensiosas idas à copa em busca de café. Entre um gole e outro de café, e entre uma fórmula de Excel e outra, eu simplesmente não conseguia parar de pensar no quanto essas alegorias pitorescas representava uma necessidade garantir toda uma manutenção social, de forma com que essas pessoas não perdessem suas posições de privilégio e, consequentemente, não houvesse nenhum progresso social: não importa o quanto pessoas transexuais se sentem violentadas diariamente, o importante é impedir que todo e qualquer esforço para que estas pessoas se sintam acolhidos, seja veementemente combatido. E tampouco importa o quão alarmante sejam os indicadores financeiros da nação, o importante é tentar se fazer valer de toda e qualquer coisa que ajude a esconder a tenebrosa realidade dos anos de chumbo nos quais estamos vivendo.

Uma vez que você compartilha de uma mesma experiência com alguém totalmente diferente de você — seja diferença de identidade de gênero ou até mesmo de classe social, por exemplo — isso faz com que ambas as pessoas estejam, de alguma forma, em pé de igualdade. Um frequentador assíduo de aeroportos e voos de primeira classe, por exemplo, poderia ficar completamente chocado caso pessoas que passaram a vida toda utilizando rodoviárias e ônibus de viagem para se locomoverem, começassem a utilizar os aeroportos com mais frequência.

No mais, eu deveria agradecer ao meu Mercúrio em Touro por ter tido sucesso na vida, como analista. Eu devia estar feliz porque consegui comprar um iPhone X.

As mesas devem continuar voluptuosamente fartas: a miséria é um prato que jamais deverá ser servido. As lareiras devem aquecer toda a sala de estar, assim como todo o seu dinheiro que deverá ser investido no Tesouro Direto. A Alexa deverá obedecer os seus comandos. O enquadramento perfeito no modo retrato.

Enquanto todos os convidados celebram em harmonia o imprescindível — seguindo todos os protocolos, obviamente — aquilo que não é de tanta importância, gradualmente, vai deixando de existir.

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Isac Chagas
Revista in-Cômoda

Decidi revisitar cada uma das eras da minha vida e irei documentar cada etapa desta minha jornada através dos meus textos. Cê me acompanha nesta aventura? :)