João da Rocha
Revista in-Cômoda
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2 min readMay 16, 2020

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AO LADO DAS PALAVRAS

Depois do almoço, era hora de um indelegável e religioso cochilo, assim era casa do minúsculo Luís, de dez. Aquela olhadinha para saber se a sala estava vazia, havia fortes evidências, depois o quarto: a mãe com as duas pernas para fora da cama era a confirmação, o pai, com um sono que nem se um rinoceronte invadisse a sala, perturbaria, parecia enfim ter se posicionado com a cabeça no ventilador, seu lugar preferido, e emitia sons, como um latido de um cachorro goguento. A tia estava à fazer cálculos no caderno, devia ser cálculo, o pai dizia que era só o que ela faz na vida. Luís então, poderia agora, folhear aqueles negócios cheio de páginas e capas confusas, palavras, muitas palavras: o que diziam, queria saber.

Esses nomes? “Machado? Kafa…” histórias, historinhas, não gostou dos livros com cálculos, perturbou-se com os gráficos e nomes da química, geografia, mas abriu todos os livros, folheou um pouco de cada página, colocou todos sobre a barriguinha, passou por personagens sem entender e paisagens sem adentrar, ficou tudo na superfície, todavia, um simples leãozinho choroso, recebendo conselhos de um elefante o chocou. Percorreu essa historinha lento e concentrado, com dedinhos quase riscando os parágrafos e um cuidado ao passar para outras páginas, imitando o tio Fred quando lia, depois: minutinhos de descanso. Parecia a mesma sensação de quando ganhou um carro dos bombeiros da tia, ou quando ouvia as estórias do padrinho Sebastião nos almoços de domingos.

Quando ouviu uma conversação na sala, Luís arrumou rapidamente os livros, como um pequeno criminoso atrapalhado, não sabendo ao certo a ordem, largou tudo, correu para o quarto, sentou na cama, sobre deveres de matemática que adiava há dias. O foco era no plano de como resgatar aquele objeto que iluminava seus olhinhos por caminhos entre nuvens. Homens diferentes do seu pai, mulheres parecidas com a prima e animais que em nada lembravam o tolo gato Didi. Das suas costas suadas, ainda caiu um negocinho que estava dentro de um dos livros, parecia uma reguinha de papel… Que coisa…
Quando confessou para um coleguinha o que havia descoberto, foi censurado. Calou-se. Pensou que talvez: O que os adultos chamam de livros, era a maior invenção do mundo.

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