Artistadamente

Ander Simões
Revista in-Cômoda
Published in
3 min readMar 16, 2020
Photo by xiaole Zheng on Unsplash

Mariana costumava pensar muito. Sua mente divagava por lugares longínquos e seus pensamentos adentravam zonas profundas e desconhecidas.

Havia algo que a impossibilitava de fincar os pés no chão; e sempre fora assim. Quando criança, na escola, sofria com a dificuldade de aprendizado; não que fosse incapaz, muito pelo contrário, apenas navegava pelas ondas constantes de seu pensamento, e, quando indagada sobre a temática exposta, permanecia calada, olhando fixamente para o horizonte, trazida a si apenas quando ouvia as risadas dos colegas de classe que já esperavam pelo momento em que o ambiente rígido e formal seria desconstruído, como sempre, pelo quase grunhido da colega, manifesto através de um leve e sonoro “hã?”. Era então que todos caiam em gargalhadas.

Mariana cresceu e consigo a mente se tornou uma completa vastidão. Ela gostava de mergulhar em abismos que a permitissem elevar o padrão de consciência; cavucar profundo em questões existenciais a fim de ressignificar a própria existência; compreender o incompreensível e descobrir o que estava envolto por um véu…

Mariana ocupava a maior parte de seu tempo com as observações da mente e começara a viver em um mundo paralelo, preferindo estabelecer sua própria criação de mundo, moldada através das viagens que fazia por setores inimagináveis aos demais, dedicando a maior parte de seu tempo a tentar desenvolver racionalmente questões que tangiam a existência. Porém, em um determinado momento de sua vida, resolveu abdicar da compreensão racional e partiu para a experimentação sensorial.

Eram noites em claro e dias inteiros em profunda investigação. Mariana delirava… e utilizava seu delírio como estado criador. Ela desconstruía o que estava posto no campo da representação e reconstruía atribuindo outro sentido. Foi assim que Mariana criou a sua arte. Com o objetivo de ressignificar o que já está convencionado a ser compreendido de determinada forma, e atribuir um novo propósito àquilo que está posto como concreto e imutável, sua arte era livre… Mariana se tornara livre… E embora tivesse conseguido atingir um certo reconhecimento com seu trabalho, a característica distinta de sua compreensão da realidade não era muito bem-aceita ou compreendida. Tachada como louca, inclusive por seus pais, todos achavam que seu estado mental carecia de atenção. Fosse essa observação mantida apenas no campo subjetivo…

Mariana delirava. E quanto mais absorta em seus delírios proveitosos, mais material obtinha para a expressão de sua arte. Através da dissolução do Eu, Mariana obtinha a excelência em seu ato criador. Mas em uma sociedade que acostumou-se a convencionar o certo e o errado à medida de padrões bem-arranjados para o melhor convívio são, e onde o ato da subversão à ordem imposta é tido como uma disfunção patológica, àquele ou àquela que almeja desconstruir, desorganizar ou apenas dar um novo sentido à ordem vigente, é tido como louco, louca!

Pois bem. Para o bem andar das regras gerais e o equilíbrio das instituições sociais, é necessário que qualquer um que se desvirtue, destoe do tom ou pincele com tintas um pouco mais fortes o quadro da paisagem social bem engendrada, seja posto à margem, distanciando-se dos demais justamente para não contaminar o rebanho que segue sem olhar através. E como sempre há alguém que nos ama e que em prol desse amor é capaz de tudo para nos proteger…

Mariana agora pertence a ala dos desajustados; daqueles e daquelas que de tão grandes não cabem em si. Daqueles e daquelas que andando de pés descalços pelo pátio central e com os olhos vidrados no chão, recebem sua dose diária de raios de Sol junto aos seus, enquanto esperam a anestesia da língua, da mente e da alma.

Anderson Simões - calov

Twitter: @calov_

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Ander Simões
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Diretor, produtor, ator, cineasta e roteirista. | Twitter e Instagram: @andersimoes_ | Site: andersimoes.com