AS PALAVRAS DANÇAM QUANDO OLHAMOS PARA O OUTRO LADO

Gabriel Schincariol Cavalcante
Revista in-Cômoda
Published in
10 min readNov 20, 2017

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Carybé, em Cem anos de solidão

16–11–17, sp, 18–11–17, 19–11,17, boituva

UMIDADE

Estou sozinho e do teto a água pinga sem parar e esta goteira pode vir a me deixar louco. Veja: pode vir, pois hoje, não sou. Estou preso neste quarto escuro deste manicômio, mas não sou louco. A água que pinga do teto pode vir a me deixar, mas hoje, não sou. Se as portas se abrissem, eu sairia caminhando tranquilo, porque não estou louco. Não sou José Arcadio Buendia e este quarto não é meu castanheiro. Não sou.

*

VIDÊNCIA

É uma pena, ele que era um rapaz tão bom, inteligente demais, acabar assim. Eu acho uma pena.

É, é uma pena, mas eu já sabia, viu?

Já sabia o quê?

Que ele ia ficar doido.

Já sabia como?

Ah, sei lá, eu sabia. Ele lia muito, toda hora, parecia que ia ficar louco qualquer dia desses.

E por que você nunca falou nada?

Ah, nós éramos amigos, né.

E não são mais?

Ah, você entendeu, quer dizer, agora ele tá lá, então, sei lá.

Belo amigo você, hein.

Ué, não é culpa minha.

Certo.

Ler demais faz isso, é sério.

É, tá bom.

Sério, pô.

Certo. Bom, é uma pena que ele tenha ficado assim.

Realmente. É uma pena, Deus que me livre, e terminou a conversa fazendo o sinal da cruz.

*

AVISO

Era um clima ruim na sala e ninguém falava nada, mas todo mundo pensava na mesma coisa. Bastava alguém fazer o primeiro comentário para o assunto se espalhar, mas todos estavam tímidos demais para começar. Queriam, mas não queriam ser o primeiro. Olhavam uns para os outros e alguns até conversavam sobre outras coisas, sem se deixarem enganar nem por um segundo sobre o que se passava de verdade em suas cabeças. Quando a porta abriu e o Diretor entrou, não ficaram espantados nem surpresos. Apenas aguardaram o velho homem caminhar até a frente da sala e dar o seu aviso.

Bom, eu tenho uma notícia desagradável, ele disse pigarreando. Passou a mão sobre a boca e respirou fundo. O professor Otelo, bem, pigarreou de novo, bem, ele está afastado das aulas. Ninguém disse nada, todos encararam o diretor em silêncio. Ele está passando por um momento difícil e por enquanto ele ficará afastado, para se cuidar, enfim, sua garganta estava seca e ele se sentia desconfortável, o professor Otelo não acompanhará vocês até o final desse curso, mas não se preocupem, a professora Maria Elisa já se disponibilizou para assumir a turma e vocês não serão prejudicados.

Virou Dom Quixote, alguém murmurou. O riso logo foi abafado pelos passos do sapato do Diretor.

*

PRODÍGIO

Otelinho tá sempre com um livro, dizia a mãe. Começou a ler cedo, antes que os coleguinhas da escola soubessem escrever o próprio nome ele já havia terminado um não sei quanto de livros. As professoras ficavam impressionadas com o menino e sua aptidão pela leitura, vai dar um homem muito inteligente, elas falavam, e a mãe se sentia toda orgulhosa. O pai ficava desconfiado, não acreditava muito nisso de ler. Que é que há nesses livros de tão importante? O menino tem é que saber como dar nó nas coisas e cuidar da vida, é isso que ele tem que saber.

Seu irmão adorava ficar perto dele, eram próximos de idade, brincavam muito juntos, mas Otelo acaba sempre com um livro e o irmão ficava sozinho, chateado. Não tinha paciência para tantas palavras, era homem mais prático. Sabia dar nó: nó duplo, nó pescador, nó direito e dava até nó nas ideias, quando se sentava para ler, imitando o irmão Otelo.

*

FICÇÃO

Não sou louco, eles acham que eu sou, mas não sou. Eu sei que essas mãos que tenho são de verdade, sei que essas paredes são de verdade, sei que os latidos que ouço vindos lá de fora são de verdade, e sei que as páginas dos livros não são. Não sou Dom Quixote, quando me vejo no espelho sei que o meu rosto é o meu rosto e não confundo meu rosto com as páginas de ficção. Eu não sou uma criatura de Cervantes, eles estão muito enganados. Sei o que é verdade e sei o que não é, e sei que dentro daqueles livros as palavras se reescrevem. Eu sei que aquelas palavras dançam entre si.

*

IRMÃOS

Otelo terminava o Mestrado e o irmão tocava a empresa do pai falecido, vendendo instrumentos de pesca. Quase nunca se viam, não tinham muito em comum para conversar quando longe. Mas quando se viam, sentiam uma especial ternura no ar e gostavam da companhia um do outro. Eram espécies diferentes, não havia meio de se comunicarem na mesma língua. Mesmo assim reconheciam o mesmo passado nos olhos um do outro e isso criava uma paz.

Sentaram-se à mesa para o Natal na casa da mãe e Otelo perguntou:

E como vai a loja?

Vai bem, vai bem, respondeu o irmão.

Que ótimo.

Mais doce de banana, filho?, quis saber a mãe.

Não, mãe, obrigado, respondeu Otelo.

Sabe, esqueci de te falar, falando em banana, li um livro esses tempos atrás que acho que você já leu.

Otelo fez uma cara curiosa, que não queria que fosse de ironia, de escárnio, mas que não pôde evitar.

Não precisa fazer essa cara, disse o irmão, desconfortável.

Desculpa, é que você nunca foi muito de ler.

É, mas eu li, respondeu, enfiando uma colherada de doce na boca.

Sim, mas qual livro?

É, Cem anos, Cem anos de alguma coisa.

Cem anos de solidão?

Isso, que tem uma companhia bananeira.

É, Cem anos de solidão. O que achou?

Meio triste. Você já leu?

Já, nossa, faz tanto tempo.

Acho que o livro é seu, ele estava nas suas coisas, eu fui arrumar as caixas do papai e ele estava lá por cima e eu achei curioso e comecei a ler.

Tá por aí?

O quê?

O livro.

Tá, tá lá em cima.

Ah, posso pegar?

Eu pego pra você, disse o irmão, já se levantando. A mãe olhou para ele e perguntou: mas não vai abrir os presentes antes?

*

INSÔNIA

As folhas do livro ainda tinham as marcações de lápis que Otelo fez quando ainda era menino. Ele leu cada página, cada frase, cada anotação. Passou a semana toda em casa, lendo. Pegou o lápis, mas não teve coragem de remarcar as folhas. Era como pisar num santuário do seu próprio passado e escrever sobre suas memórias seria uma violação, uma destruição do tempo. E quando Aureliano Babilônia teve seu destino selado pelas formigas, fechou o livro com as mãos suando. Deixou o livro pousado no colo e encarou a parede branca.

Eu nunca li essa história, disse baixinho.

E passou a noite em claro com esse pensamento.

*

AULA

Vejam, vejam, nada disso nunca aconteceu e tudo isso aconteceu. Tudo ao mesmo tempo. Vocês veem? Vocês veem? O que vocês não estão vendo também está acontecendo e nada jamais será igual, vocês precisam enxergar isso, vocês precisam saber. Vocês precisam saber que assim que vocês fecharem esses livros, tudo mudará. Tudo, tudo mudará. Prestem atenção nisso. Tudo está em constante mudança e as palavras impressas, elas também estão se movendo. Esse livro, essas folhas, não são uma prisão capaz de aprisionar essas palavras. Elas têm vida própria, elas dançam no escuro, elas fazem a própria música, elas se reescrevem. Esqueçam tudo isso que eu ensinei ontem. Esqueçam tudo isso, porque nada do que eu disse ontem faz sentido. Agora é tudo novo, tudo outra vez. Abram os livros, abram os livros agora! Vejam as palavras, memorizem essas palavras! Elas nunca mais serão as mesmas!

*

BOLIVIANO

Eu li de novo Cem anos de solidão e tudo parecia diferente, parecia que eu nunca tinha lido.

Cem anos de solidão é daquele boliviano, né?

Colombiano, porra. Gabriel Garcia Marquez.

Ah, como é que eu vou saber?

Não sendo um idiota.

Ah, eu não sou igual você, nerd da literatura.

Enfim, estava tudo diferente, eu não consegui dormir pensando nisso.

Quando você leu?

O quê? De novo? Semana passada.

Não, antes.

Eu era moleque.

Ah, então você só esqueceu.

Não, quer dizer, talvez, mas eu lembro da história que eu li a primeira vez. Lembro bem. E não era a mesma. Claro, tudo se parecia muito, mas não era a mesma coisa. Como se tudo tivesse mudado de lugar, mas com a mesma cor. Não sei.

Você vai acabar ficando doido, cara.

Eu, né? Que acho que o Garcia Marquez é boliviano.

*

PAPEL-DE-PAREDE

Não havia mais espaço nas paredes do quarto, porque cada página do livro estava colada em sequência, ocupando tudo, como se embrulhasse o quarto e as ideias e o próprio Otelo. E Otelo encarava as páginas, nervoso, suando.

Eu nunca li essa história, ele repetia.

Ele lia as páginas e tentava entender, mas algo havia mudado.

*

CAIXA-POSTAL

Mauricio, sou eu, Otelo. Tem alguma coisa estranha acontecendo. Desde que eu peguei o livro com você na casa da mamãe, não sei, tem alguma coisa acontecendo. Certeza que aquele livro é o meu? Não sei, parece que a história está diferente. Você anotou alguma coisa? Ou pegou de alguém e não lembra. Enfim, me liga.

*

MEDO

Pouco importa o que Saint-Beuve diz, explicava Otelo quando uma moça de cabelo curto e botas pretas, sentada na primeira fileira, fechou o livro que estava sobre a sua mesa. Que livro é esse?, perguntou o professor.

Cem anos de solidão.

Otelo ficou em silêncio e encarou a moça por alguns segundos. Abra esse livro, ele disse. Ela não entendeu. Abra esse livro.

Desculpa, eu não estava lendo no meio da aula, é que…

Abra esse livro! Você não pode fechar esse livro!

O som da sua voz pesou como uma tonelada sobre a sala. Suas mãos tremiam e suavam. A moça abriu o livro, devagar, assustada.

Com licença, disse Otelo, saindo da sala para não mais voltar.

*

DESPEDIDA

Quando Mauricio abriu a porta do irmão Otelo e sentiu o cheiro podre vindo lá de dentro, temeu pelo pior. Ele morreu, pensou. O irmão estava deitado, com as calças sujas de merda e molhadas de mijo e as páginas estavam todas coladas na parede, todas riscadas, cheias de anotações. A luz era só da lâmpada, já que a janela também estava tomada pelas folhas. E Otelo estava ali no meio, diante de tantas palavras, mijado e cagado, com os olhos semicerrados, repetindo para si:

Eu nunca li essa história.

Eu nunca li essa história.

Eu nunca li essa história.

E foi assim que ele foi levado pela ambulância, enquanto o irmão segurava o choro.

*

DANÇA

Estava convencido que o livro se reescrevia enquanto ele não olhava. Precisava de um tempo para isso acontecer, se lesse a história de novo um dia depois de ter terminado o livro, a história seria a mesma. Se lesse um mês depois, seria um pouco diferente. Um ano depois, muito diferente. Dormia muito pouco e esperava o tempo passar para reabrir o livro.

Terminou seu Doutorado, mas pouco lhe importava. Esqueceu do assunto por alguns meses, mas algo em sua cabeça estalava e ele precisava abrir aquele livro e percorrer os olhos pelas páginas. Agora todas as páginas estavam cheias de anotações: lápis, caneta azul, caneta preta, caneta vermelha. Anotações de diversas leituras. E todas diferentes, todas apontando em direções opostas.

Eu nunca li essa história, ele repetia. E não conseguia dormir, porque tinha certeza de que, ao olhar para o outro lado, as palavras dançavam dentro do livro para terminarem em uma nova organização.

*

DESCOBERTA

Hoje me vi no espelho depois de muito tempo e quase não me reconheci. Quase pude dizer: este não sou eu. Mas sou eu, é claro, e toquei meu rosto com a minha mão e meu reflexo repetiu o mesmo movimento, porque era minha mão, porque era meu rosto. Eu quase não me reconheci, mas o espelho não mente. Eu não estive olhando para mim e algo mudou no meu rosto. Algo mudou naquele livro. E por muito tempo eu não reconheci. Mas hoje eu sei.

*

REENCONTRO

A porta se abriu e a luz entrou, mas Otelo não se moveu na sua cama. Continuou sentado encarando as próprias pernas cruzadas sobre o colchão. Era isso que havia ali: uma cama, uma pia, uma porta para a privada. Livros eram proibidos. Agora a luz iluminava esse pequeno quarto sem que seu paciente se movesse. Alguém entrou caminhando e Otelo não se deu conta de quem era até levantar os olhos:

Maurício?

O irmão estava ali, e ele já estivera ali antes, mas agora era diferente, porque ele usava a mesma roupa que Otelo: calças largas brancas, uma camiseta cinza, um tênis sem cadarço. Maurício?

Oi, irmão.

O que você faz aqui?

Eu estou louco, Otelo.

Como assim?

Eu reli aquele livro, Otelo. E aconteceu comigo. Eu não reconheci a história.

Otelo riu e o irmão não se moveu.

Do que você está rindo?

Você não está louco.

Nós dois estamos, Otelo. Nós dois.

Não, você não está. Nem eu, nem você.

Estamos, Otelo. Olha só onde estamos.

Eu sei onde estamos, mas onde estamos é apenas concreto erguido a nossa volta, e o que se ergue a nossa volta não se ergue dentro de nós. Estamos aqui, mas não somos loucos.

Eu nunca li aquela história.

Eu também não.

Isso é loucura, Otelo!

Não, não é. Eu nunca li, nem você nunca leu.

Isso é loucura.

Sente-se, pediu ao irmão, que se aproximou e sentou ao seu lado.

Eu nunca li, porque eu não sou o mesmo. O tempo passou, Maurício. Eu não sou o mesmo, e quando eu me olhei no espelho eu quase não me reconheci. A história, Maurício, ela continua a mesma. As palavras continuam as mesmas. Os pergaminhos de Melquíades continuam os mesmos. Só há uma coisa que mudou.

Isso é loucura, Otelo. Não pode ser.

Fique calmo.

O que mudou?

Otelo sorriu, como sorria quando os dois eram meninos e Maurício brincava de fazer nós e mostrava para o irmão, que tirava os olhos do livro e encarava a corda, sem assumir que invejava a capacidade de Maurício em fazer nós. Nós mudamos.

Nós mudamos?

Nós mudamos. E nossos olhos também.

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