CONTO SOBRE UM AMIGO

Gabriel Schincariol Cavalcante
Revista in-Cômoda
Published in
2 min readMar 17, 2019

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17–3–19, sp

O que eu fazia todo dia antes de sair era encher sua vasilha com duas canecas de ração, passar a mão em sua cabeça, dizer, olhando sério para os seus olhos, Até mais tarde, e esperar que ele se virasse para a vasilha e começasse a mastigar a ração sabor cereais, sua preferida, e eu podia ouvir ainda do corredor o barulho do nhec trec nhec trec nhec trec da sua mandíbula e dos seus dentes triturando a comida, e quando eu chegava, mais tarde, ele estava sempre deitado no meio da sala com os olhos para a porta e erguia as orelhas assim que eu a abria e esperava eu dar dois passos para frente para, então, como quem diz Agora, sim, levantar-se e vir até mim procurando a minha mão com a cabeça, mas ele, na sua própria inteligência, bolou um plano para mudar essa rotina e, sabendo que eu só saía de manhã quando ele se virava para a vasilha, depois de eu enchê-la com ração, acariciar sua cabeça e dizer, olhando sério para os seus olhos, Até mais tarde, ele não se virou, só me encarou de volta e meteu a língua para fora e fez arf arf arf da sua respiração pesada que de algum jeito me ajudava a dormir durante a noite, e eu disse Vamos, come, e ele apenas com a língua para fora fazendo arf arf arf, e eu Vamos, rapaz, come, que eu preciso ir, e ele com a língua para fora fazendo arf arf arf, sem tirar os olhos dos meus, e então não me restou outra coisa a não ser me sentar no sofá e pensar Mas que caralho de cachorro, e ele veio, vitorioso, ciente do sucesso do seu plano, até mim, metendo a cabeça no meu braço e recebendo uns segundos a mais de carinho, para então se virar, ir para a cozinha e começar com o nhec trec nhec trec nhec trec da ração sendo triturada e engolida, só aí eu pude levantar e sair pela porta, e assim ele foi repetindo, todos os dias, ditando a hora que eu saía e me esperando na mesma posição, deitado olhando para a porta, demonstrando que a todos é possível compreender, aprender e se adaptar, e não é só o polegar opositor que faz a superioridade, mas a engenhosidade em si, e eu me pergunto, agora um pouco tarde de mais, se ele não teria compartilhado comigo, caso pudesse, o truque que eu poderia pôr em prática para ele também ficar mais tempo, só até eu parar de sentir saudade, sabe-se lá quando, se é que um dia, mas ele era só um cão que fazia arf arf arf com a língua para fora.

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