Conversando sobre O Mecanismo

Lucas Matto Grosso
Revista in-Cômoda
Published in
9 min readMar 30, 2018

sem spoilers

Eu assisti ao mecanismo numa tacada só, e isso não apenas por eu amar política e séries e filmes nacionais, até por que a minha namorada, que é o exato oposto disso tudo, se prendeu à história tanto quanto eu. É uma série muito boa (!), mas há o que se melhorar.

Começando pela parte da reação à série.

O fato de se tratar de ficção deveria bastar para as críticas, mas no Brasil, a gente não consegue lidar com criatividade, e principalmente, com oposição! Estados Unidos tem um caldo

Alec Baldwin, imitando Trump, e ensinando ao mundo a fazer arte com que der na telha!

cultural interessantíssimo exatamente pela liberdade criativa que já se acostumaram e que faz o criador não se sentir amedrontado de fazer o que bem entender e tirar da sua cabeça, importando-se apenas com a preocupação daquilo funcionar ou não como arte — em tocar! Essa coragem criativa, eu me lembro bem, era muito comum também na Grécia Antiga- pegue como exemplo “As Nuvens”, comédia de Aristófanes, onde o cara tira sarro com a cara de todo mundo- inclusive com a de Sócrates, o colocando, basicamente, como um sofista charlatão.

Seria Aristofanes o Padilha da nossa amada Grécia?

Agora, alguém tem dúvida da qualidade inventiva dos gregos? Ninguém tem.

Mas tudo bem, a reação que houve em relação ao mecanismo é plausível- narizes tortos também são bem vindos na arte. Querer boicotar, não assistir a série? Ok, isso é algo que eu entendo também.

Única coisa que eu espero em relação às reações é que elas não façam com que a coragem de se cutucar no incutucável retroaja, afinal, esse é, de todos, o grande ponto desta série!

A arte não é matéria, é forma, e por isso não tem partido, não tem ideologia, não tem nada propriamente teu- massa tem algo que a engrandece de pronto, sem duvida alguma são a criatividade e a coragem! Os artistas que fizeram isso na história fizeram a frase de Hölderlin*, só não ser perfeita por uma modificaçãozinha que eu me permitirei fazer:

O QUE PERMANECE É OBRA DOS ARTISTAS!

Geraldo Vandré metendo o louco, e sendo artista pra caralho!

Vide: teatro do absurdo,

Ferreira Goulart, neorrealismo italiano, Charles Chaplin, entre tantos que fizeram da arte, protesto!

Enfim…

Quando é o Tarantino fugindo da realidade ninguém reclama; quando é um brasileiro, a gente chia…

Quanto à questão REALIDADE na série.

Não se sabe o que é real, além do que se passou nas televisões, o que está no domínio publico e tudo mais, porém, isto, talvez seja o de menos. E explico; não há o que se falar da mesma como um documentário, mas como uma série dramática que vem a nos trazer um palimpsesto (segundo Tognolli),

Em sentido figurado, seria uma maneira de recortar realidade com ficção

sendo esta forma de expressar-se não da ficção para a realidade, mas da realidade para a ficção- o que não exclui de forma alguma, da obra uma parcialidade, algo que nos é dito pelas entrelinhas (e isto é ótimo!)

Inclusive, nacionalmente eu acho saudável este tipo de obra, pois faz ser desenhável no imaginário popular o que se passa dentro daquele universo tão distante de nós, e a partir desta aproximação gerar uma afetação em nós com aquele mundo que, ao passo que é tão abstraído de nós, tanto nos diz respeito. Afinal, é complicado para nós, tão distantes, as vezes imaginar o fato de que um presidente senta pra conversar com um ministro, e que isso não necessariamente é da maneira tão formal que nos dá a impressão de onde estamos. Deputados, ministros, procuradores, todos estes personagens são pessoas reais, de carne e osso e ego, e não apenas ego. Diretores de estatais tem famílias, e da exata maneira que podem ser filhos da puta com toda a nação que roubam, podem ser sensíveis e frágeis com seus familiares, e isto nos é mostrado na série em momentos críticos da mesma.

Isto tudo nos dá elementos bons a serem introduzidos ao imaginário popular- não como pedagógicos, mas como provocativos! Ou seja, não pra me fazer imaginar, “nossa, eu tenho que entender que aquele cara que me rouba é um cara legal”, mas como, “talvez eu esteja desumanizando alguém por atos e achando que ele é tão diferente de mim”, sem entender que o mesmo cara que rouba toda a nação, pode estar comigo sentado numa mesa, tomando uma breja, e vendo jogo do verdão, e que a corrupção, o desvio de conduta em geral, é parte de um modes operandi muito maior que o simples filho da puta desalmado que se imagina daqui donde estamos.

Política não é matéria. Política é forma, e a corrupção é, dela, no nosso sistema, parte inerente- até que façamos não ser.

Por isso, não vejo nem como aquele que tanto se irrita com a série se ofender. A série não nos traz uma corja, e sim pessoas que entenderam mais ou menos que, se você entra nesse mundo, é desse jeito. E aqui vai um ponto, viu? Eu me lembro perfeitamente da delação premiada de Paulo Roberto Costa (na série,

Paulo Roberto Costa, diretor da PetroBrasil, digo… Petrobras

Pedro Rangel — atuada por Leonardo Medeiros), quando ele disse algo do tipo “meu, eu tava lá na Petrobras há anos, e nada, todo mundo fazia e eu nada. Eu não mudaria a realidade, ali, e então entrei mesmo dentro daquilo tudo”**. Ou seja, o cara que hoje nós culpamos, já foi um indignado, mas que como a sociedade não fez nada para ser mudado (e talvez, nem ele), ele aceitou aquilo é entrou- em outras palavras, aceitou trabalhar com este ‘mecanismo’, parte inerente do sistema, para fazer a máquina rodar. Agora, novamente, isto não é pedagógico, é provocativo. É para nós provocar a pensar sobre, “meu, se tem uma posição aberta onde se usa este desvio de conduta (o mecanismo), tanto faz se eu entro ou não, alguém vai fazer aquilo!”- e esse pensamento é muito importante. Quando se pensa que independentemente de quem, alguém vai fazer o desvio de conduta, se despersonaliza a ação, e se entende de que se trata de um problema estrutural (!!!), e não da simples moralidade (que obviamente também está imbricada nisso tudo, porém não sendo mais o ponto principal da análise necessária a se fazer, e sim da estrutura como um todo!).

Ok. Agora vamos falar de série?! ***

Sobre a série como produção.

A série tem pontos fracos e pontos fortes.

PONTOS FORTES

Selton Mello, Caroline Abras, Enrique Diaz (voando baixo na série), Antônio Saboia e Lee Taylor em suas personagens

O roteiro tem a preocupação de não nos dar heróis e vilões raros, mas geométricos, e com um grande grau de humanidade (mas calma que nem tudo são flores, e falarei disto mais embaixo). A fotografia é realmente um desbunde, e a série nos traz uma paisagens que são maravilhosas de cidades lindas como Curitiba, Rio de Janeiro e Brasília. A série consegue criar, razoavelmente bem, um clima de que estamos no meio de uma busca policial, com momentos de boa tensão. Ela também nos trouxe a direção de nomes como José Padilha e Daniel Rezende -que homens. E traz, também, uma ambientação muito legal acerca de onde se passa tudo, isto é, é muito legal que tenham nos trazido locais onde meu imaginário não alcançava. Gabinetes, delegacias, e um par de mundos que eu não via. Bom ponto.

Foi ótimo ver o nosso querido Cabeleira (Jonathan Haagensen) mudou de lado e tomou jeito na vida e agora tá trampando de polícia.

Quanto à atuações muito boas pra todos os lados. Mas dou dois destaques, Enrique Díaz (que é na realidade peruano, e que na série faz Roberto Ibrahim, que remete ao Alberto Youssef) e Sura Berditchevsky ( que faz a Janete Rucov, que remete à Dilma Rousseff)- ambos destruíram! Sendo que nossa ex-presidente ainda terá mais espaços, com certeza, e a atriz com toda a certeza vai sustentá-la muito bem!

Só que foi triste ver nosso querido Neto (Caio Junqueira) ter virado um cuzão. O mundo dá voltas…

Adorei!

E aqui só mais um detalhe legal, viu? A forma como tratam o juiz Paulo Vigo (Otto Jr., remetendo-se ao Sérgio Moro), tratando como é a vaidade de um juiz, com uma simples troca de canetas e um sorriso no rosto.

Sutil. Maravilhoso.

E pra finalizar, claro! Ficou do caralho Bichos Escrotos, do Titãs, na série. Ansioso para tocarem Vossa Excelência na próxima temporada!

Pontos fracos da série? Bom, lá vão algumas coisas que me incomodaram.

Daqui pra baixo tem spoilers

O Brasil carece de algumas coisas no roteiro. Em alguns momentos, senti que havia uma mudança comportamental de alguns personagens que não foram tão bem explicadas, como a da Verena com o Guilhome, que ela fica bolada, e não liga mais momentos depois. Inclusive, esse personagem, em que pese a boa atuação do ator, foi meio que sem porquê. Qual é? Colocar um cara espião do amigo da verena pra fazer parte da operação enganando ela e tal… super desnecessário. Inclusive, a morte não morte do Marco Ruffo, cara, que tosco né? Vamos combinar… não era nem um pouco necessária. Seria mais fácil, e mais crível, introduzir o Guilhome como um cara que se divorciou da esposa e voltou pro Paraná, qualquer coisa… não foi algo que convenceu. Fraco ponto.

Outra coisa relevante é uma barrigada que dá na série mais ou menos no meio dela. Ela fica muito presa à delação, sem que isso tenha sido algo que realmente trouxe uma tensão, ou qualquer coisa do tipo, o que tira da mesma ritmo, e também, desprende um pouco a gente do que acontece. Mas tudo bem, vai…

O personagem que remonta ao Marcelo Odebrecht:

Emílio Orciollo Netto fazendo o poderoso empreiteiro (numa atuação boa, apesar do roteiro não favorecer)

muito artificial, e não coadunou com a série como um todo. Tantos personagens palpáveis e aquele super vilão sem defeitos ali… não orna, entende? Além da maneira como ele entra na reunião do cartel ser super Le Roi-Soleil, só que sem reino, e com um monte de caras tão fodas quanto ele, na mesma sala, que não fizeram nada. Ou seja, uma cena que não convence pelo simples fato de a série não ter se prestado em momento algum a me convencer que ele era tão incrível assim. Com essa cena, só se desvalorizou todos os outros, que baixaram a cabeça, e gerou estranhamento ao público, por todos os maiores empreiteiros do país terem endossado pacificamente o xitique chic ponderado do empreiteiro fodão.

Agora, pra mim o tosco mesmo foi a cena que o Marco Ruffo saca,

Marco Ruffo minutos antes de ter a sacada mais genial da vida (ou não)

como se fosse algo genial, que a corrupção acontece em todos os lados e como uma parte do modes operandi, depois de ficar olhando pra um app que sua filha autista ficava olhando em que a imagem se reproduzia infinitamente. Sério, não é genial constatar isso, e pareceu besta um cara ficar tão alucinado com algo que até minha mãe fala quando quer me falar pra, sei lá eu, não furar a fila (“oh, por isso que o Brasil tá desse jeito, menino”).

Enfim, uma série, com pontos ótimos, e detalhes que pesam um pouco contra.

Mas no veredito deste que vos fala é que, com tanta coragem, e que com um mundo de informações e coisas que acontecem, essa série nos serve não apenas para diversão, mas também pra mostrar que esse país também é digno de um audiovisual o que o vise por inteiro.

Obrigado por essa produção à todos que se empenharam em realizá-la.

PS: uma curiosidade que eu notei foi a de que a casa do Marco Ruffo é a mesma casa em que se passa a série 1 Contra Todos da FOX. Uma série do caralho também, que se passa também em Curitiba, e que também se baseia em história real — e tem o Ep. 1 disponível no YouTube.

https://www.youtube.com/watch?v=cDz_NCIJXUo

*Friedrich Hölderlin: “o que permanece é obra dos poetas”, se referindo à obra homérica como um todo.

**obvio que ele não disse desta maneira, mas não vou caçar a delação do cara, kkkk, mas o conteúdo era esse dai mais ou menos, ele ficou anos na empresa e viu que ou se mantinha com um salário merda, ou aceitava aquela posição.

***agora, pitacos de um amante de cinema, e não de um crítico de cinema

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