Der Rosa Winkel

Isac Chagas
Revista in-Cômoda
Published in
4 min readJun 30, 2021
Photo by Sydney Sims on Unsplash

“Eu sei que tudo vai ficar bem
E as minhas lágrimas vão secar
Eu sei que tudo vai ficar bem
E essas feridas vão se curar.”

Indestrutível” — Pabllo Vittar

Na última sexta-feira, na cidade de Recife, capital de Pernambuco, uma mulher trans em situação de rua, foi brutalmente atacada por um rapaz de 17 anos que ateou fogo nela. Roberta Nascimento da Silva, de 33 anos, teve 40% do seu corpo queimado. Um dia após sua internação, foi constatado que as queimaduras causaram uma necrose profunda em seu braço esquerdo. Para que seu quadro clínico não piorasse ainda mais, o braço de Roberta foi amputado. O autor do crime foi detido pela polícia.

Na mesma semana em que Roberta foi atacada, três dias antes, ocorreu um outro crime igualmente brutal: Gabriel Carvalho Garcia, de 22 anos, foi executado com, pelo menos, três tiros na cabeça, em uma barbearia na cidade de Embu das Artes, na Região Metropolitana de São Paulo. O homem que assassinou Gabriel estava encapuzado e está foragido. A família de Gabriel e o seu namorado acreditam que a motivação por trás do crime tenha sido a homofobia. Ambos os crimes ocorreram em pleno Mês do Orgulho LGBTQIA+.

As estatísticas são assustadoras: de acordo com a organização não governamental, defensora dos direitos LGBT+, Grupo Gay da Bahia, em 2020, ocorreram 237 mortes relacionadas à homotransfobia, o que significa que, a cada 36 horas, um LGBT+ foi assassinado ou se suicidou. E, ainda no que tange às estatísticas, de acordo com o G1, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo: em 2020, 175 pessoas transexuais foram assassinadas no Brasil — uma a cada dois dias.

Muitos fatores contribuem significativamente para que o Brasil possua indicadores tão alarmantes no que diz respeito a morte de pessoas LGBT+. O conservadorismo exacerbado, amparado veementemente pelo discurso de que “devemos amar o pecador, e não o pecado”, juntamente com um juízo de valor permissivo o suficiente para tolerar o que deveria ser intolerável, resultam, invariavelmente, na ignorância incomplacente — ignorância essa que faz com que influencers e apresentadores se sintam encorajados o suficiente para proferirem discursos de ódio que vão desde tentativas equivocadas de convencer a população de que o fato de alguém não aceitar ou não respeitar a orientação sexual alheia deve ser passível de respeito, até insinuações explícitas e incabíveis de que o movimento LGBT+ está estritamente relacionado à práticas de pedofilia. Sabe, é cansativo. É bastante desolador perceber que, em 2021, ainda temos que explicar o óbvio e lutar pelo básico.

Sempre quando eu reflito sobre os assassinatos motivados por homofobia, eu não consigo parar de pensar que poderia ter sido eu, algum amigo meu ou qualquer outro LGBT+ que eu conheço a ser friamente assassinado. Na Alemanha Nazista, nos campos de concentração, os homossexuais masculinos eram identificados com um triângulo rosa invertido (em alemão: rosa winkel), que era costurado em suas vestes. Anos mais tarde, esse símbolo foi resinificado, tornando-se um símbolo de resistência e combate à homofobia. Apesar do significado positivo que foi atribuído ao símbolo, ainda assim, uma vez que vivemos em uma sociedade que conspira fortemente contra a nossa existência, sinto como se ainda, todos nós, LGBT+, estivéssemos marcados, no lado esquerdo do peito, com um triângulo rosa invertido, condenados apenas por ser quem nós somos.

Contrariando as estatísticas acima, eu diria que as mortes de pessoas LGBT+ são muito mais constantes do que os números revelam: todos nós morremos todos dias. Todos nós morremos quando um de nós é expulso de casa por causa de nossa orientação sexual ou identidade de gênero, todos nós morremos a cada comentário pejorativo que nos são direcionados na escola, na faculdade, no trabalho ou na rua, todos nós morremos pelo fato do mercado nos excluir e termos como única opção de sobrevivência a prostituição e também todos nós morremos a cada direito que o Estado nos nega.

Todos nós morremos.

Quantos Gabriéis, Dandaras, Plínios, Matheusas, Alexandres Ivos e Marielles ainda perderão suas vidas antes dos malfeitores cessarem a carnificina que os mesmos promovem com os nossos corpos? Hoje, no último dia do Mês do Orgulho LGBTQIA+, precisamos relembrar que ainda há muito o que ser feito. Ainda precisamos lutar bravamente — e, inevitavelmente, tomar algumas porradas — para que, lá na frente, as gerações futuras não precisem fazê-lo. E que o orgulho de ser quem somos não se limite a um único mês — e que aqueles que se dizem simpatizantes e apoiadores da nossa causa não menospreze a nossa existência nos outros onze.

Honestamente, eu ainda espero que, um dia, a sensação de impotência, proveniente da suposta existência de um triângulo rosa costurado nas minhas roupas, que evidencia uma sentença de morte, desapareça juntamente com o ódio que nos mata diariamente.

Parem de nos matar!

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Isac Chagas
Revista in-Cômoda

Decidi revisitar cada uma das eras da minha vida e irei documentar cada etapa desta minha jornada através dos meus textos. Cê me acompanha nesta aventura? :)