Desaprendemos a ver na era da dominância da imagem

Lucas Arcelino
Revista in-Cômoda
Published in
3 min readJul 23, 2019
Um nobre acadêmico — Fotografia por Lucas Arcelino (2017)

Não é certo, mas me parece que no contexto da hipermídia digital, dentre a confluência de linguagens e signos, as imagens acabaram por ocupar uma posição de dominância no campo perceptivo. Atualmente, a disposição de pixels numa tela LCD — que com frequência se encontra a aproximadamente dois palmos de distância dos olhos — é o que captura a tão dispersa atenção dos nativos digitais.

Fato é que desde sempre a imagem ocupou uma posição privilegiada nas formas de percepção humanas. Grande parte disto se desenvolve em função de seu caráter intuitivo, e sua forma de transmitir mensagens ou símbolos de maneira simples e rápida. Quando observo a figura de um prédio, imediatamente aquela imagem me diz algo. É possível discernir as formas, cores, disposição dos objetos, e sua função, caso eu já tenha visto outro prédio e apreendido seu significado dentro de uma sociedade.

A imagem também é um modo muito eficaz de se transmitir ideias mais complexas, intimamente imbricada a estímulos emocionais. Por exemplo: quadros, fotografias, esculturas, etc. não te dizem objetivamente “o ser humano é falho”, mas podem sugerir, inspirar a imaginação, de uma maneira que o próprio sujeito possa chegar a esta conclusão. Entretanto, a busca por esses significados implícitos em cada obra necessita de uma sensibilidade estética de quem a vê, ou seja, uma disposição a buscar no que está sendo observado mais do que apenas as informações empíricas transmitidas ao seu canal sensorial visual.

Para o filósofo Han, é necessário à nossa sociedade uma pedagogia do ver. “Aprender a ver significa ‘habituar o olho ao descanso, á paciência, ao deixar-aproximar-se-de-si”. Parece até contraditório, que na era da dominância da imagem, as pessoas tenham se desacostumado a ver. Mas, para o autor Guy Debord, isso faz parte do que ele chama de a sociedade do espetáculo. Nesse contexto de espetacularização as imagens se esvaziam de sentido, e se tornam mero estímulo e exibicionismo. As redes sociais estão repletas de imagens que são curtidas, mas não são vistas. Dessa forma somos condicionados ao imediatismo e ao ritmo frenético que vai passando cada vez mais depressa por nossos feeds.

Creio que esse modo de percepção distraída é produto de nosso modo de existência nessa era digital, o que acaba por criar alguns malefícios relacionados a nossa experiência reflexiva. Desse modo, é esperado que grupos imersos em outros modos de existência respondam a outra dinâmica perceptiva e parando para observá-los é possível expandir nosso horizonte de possibilidades, e repensar nossa relação com as imagens.

Pensando nisso, me lembro da relação do povo Kayapó Xikrin com a transmissão de conhecimentos. Essa comunidade indígena que vive as margens do rio Bacajá, no Pará, foi estudada pela antropóloga Clarisse Cohn, que percebeu a ligação entre o ver (omunh) e do ouvir (mari) no aprendizado e na vida dos indivíduos. Estas denominações não devem ser levadas demasiadamente ao seu sentido literal. Para eles, o olhar não é somente enxergar algo, designa, de certa forma, o contato imediato e irrefletido com qualquer coisa; assim, é necessário o ouvir, que é compreendido como um “prestar atenção silenciosamente”.

É muito interessante como essa concepção de mari dos Xikrin se aproxima da pedagogia do ver proposta por Han e me remete também ao “pastor do ser” no sentido colocado por Heidegger. O filósofo alemão em sua obra Ser e Tempo, coloca que a tarefa que cabe a todo ser humano é o de pastorar o ser, isto é, estar atento e ouvindo com atenção aquilo que o ser lhe revela.

Todas essas concepções compartilham aquilo que nos falta, a saber: uma imersão no tempo contemplativo. A reflexão é algo que exige esse avanço em direção a angústia, que é despertada após se romper o véu da aceitação das primeiras impressões. Na minha concepção, isso se faz ainda mais necessário no campo das imagens, antes que tudo que se vê não passe de mera propaganda.

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