DESCREVENDO ALGUÉM, como Stephen King mandou — 1 . Olhos bovinos

Tiago da Silva
Revista in-Cômoda
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2 min readJun 5, 2018

Eu li em algum lugar que o demônio encarnado na Terra chamado Stephen King teria dito isso. Teria dito que essa seria uma forma de exercitar a capacidade de escrita, a capacidade de caracterização de personagens, especificamente. Ele teria dito que o pretenso escritor deveria, com regularidade, escolher alguém, sabe-se lá com que critério, e descrevê-lo.

Eu vou tentar. Vou escolher alguém aleatório e falar sobre esse, então, personagem.

Ele tem uma vida estável. Casou cedo. Trabalha muito e o fez desde a adolescência. É competente e respeitado no trabalho, aliás. Ganha bem e se orgulha disso. Há pessoas que gerencia, movimenta grandes somas em dinheiro. Seu carro é novo. Estudou, mas não demais. “Quem estuda demais não tem tempo para ganhar dinheiro.” Sua casa é boa. Costuma reunir amigos nela. Churrascos, algum álcool, longas conversas. Entende de tecnologia. Monopoliza conversas, gosta de ser o epicentro dos assuntos. Se dá bem com a família, é sociável.

Mas seus olhos não têm brilho. Seu olhar tem um ar bovino, algo vago. Come, trabalha, dorme, fode — eu suponho — mas faz todas essas coisas mecanicamente, no piloto automático. Mais por necessidade fisiológica, pressão social ou comodidade do que por prazer, parece. Não sei dizer se nunca descobriu de que gosta de verdade ou se descobriu e não teve coragem de viver o que descobriu. Seus assuntos ficam sempre na superfície e não posso sequer imaginá-lo se abrindo, revelando suas vulnerabilidades, falando do que é, e não do que tem. Eu particularmente acho que está um pouco morto por dentro.

Pensar nele me entristece às vezes, não sei se por inveja de tudo que conquistou ou por pena, por lamentar que alguém possa não querer nada além de coisas. Algumas pessoas aceitam ser coisas apenas.

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Tiago da Silva
Revista in-Cômoda

Às vezes me surpreendo com o que escrevo, porque não sabia que pensava assim.