Imagem: Artem Makarov /Unsplash/Reprodução

Diáspora dos Pardais

Lucas Arcelino
Revista in-Cômoda
Published in
2 min readAug 30, 2022

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Os duros bicos cónicos trituram suas sementes africanas, dentro das paredes de gravetos, suspensos em lares arbóreos. São muitos. Plurais como as palavras, livres como a poesia e persistentes no viver.

Suas cores em tons de cinza e marrom os camuflam dos olhos curiosos. Seu canto modesto não atrai atenção indesejada. Parece proposital, como se soubessem que a paz advém do anonimato e que o visto sofre o risco de sua exposição. Mas mesmo discretos, alguém os notou, e achando pouco os nomeou, Passer.

Aves passageiras. Passar é não se demorar ao ponto de deixar marcas, mas ainda assim existir momentaneamente em algum lugar. Estar em trânsito e se adaptar. Se não há sementes, busca insetos. Se não há árvores, seus ninhos se acomodam em telhados. Passar também é persistir, e onde quer que esteja, sobreviver.

Carregados a força, hoje estão em todos os continentes. Modificam cantos e penas para melhor adaptação, mas ainda são o que são, pardos que sobrevivem.

Em muitos lugares, mesmo sua existência sutil e sem exageros, incomodam. São chamados de pragas, uma ameaça à população das aves concorrentes. As mesmas pessoas que os trouxeram de África, engaiolados, para alimentar o prazer da posse, ao vê-los livres protesta:

“Que ave sem personalidade! O som que sai do seu bico ofende seus vizinhos plumados. O criador os criou em um dia de tédio!
As copas estão recheadas de pardais, eles espantam os belos espécimes, aves nobres, e cagam na minha varanda. Que tal mata-los?”

Orquestraram um espetáculo sádico de prender, procriar, espalhar, e assassinar os passageiros alados. A culpa do Pardal é ser livre e não se deixar morrer para agradar o homem; é sobrevier a destruição das matas e invadir os vãos das cidades; é se multiplicar e varar o planeta com asas marrons.

Também sou pardal. Tenho o bico duro para fraturar suas sementes. Tenho penas castanhas que me mascaram em suas metrópoles. Tenho um canto secreto que só ressoa entre os meus. Tenho a alma livre para rasgar o céu de cada canto desse planeta. Sou passageiro e não estou aqui para lhes agradar.

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