Dilatação

Carla Guerson
Revista in-Cômoda
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3 min readApr 30, 2021

A dor era forte. Forte demais. A única coisa que me lembro. Dor, dor e dor. Vontade de morrer. E frio.

Sei que esse não é o relato de parto que você quer ler.

Você quer beleza, que eu diga que valeu a pena, que esqueci a dor. Não esqueci. Anos depois e ainda dói. Uma dor insuportável.

Preciso te dizer, logo. Eu não aguentei. Eu não aguento a dor. Eu pedi para morrer. Eu desisti. Eu olhei no fundo dos olhos do meu parceiro e disse: eu prefiro morrer. Não me deixe aqui. Eu vou me jogar pela janela.

Muitas vezes depois eu contei isso, rindo. É engraçado. Mas eu estava falando sério. Muito sério. Eu não consegui suportar a dor daquele momento. Eu não consegui suportar a dor de você saindo de mim. Eu ainda não suporto.

Eu esperei por horas e não me deixei abrir por você. Eu permaneci fechada e desisti. A médica me tocou e disse: não tem passagem. É necessário esperar. Paciência. Dilatar, aos poucos. E a dor imensa. A solidão.

Anos depois e você ainda não saiu de mim. Você quer sair, mas eu me sinto só. Eu me sinto só, extremamente só. Vazia. E não, ainda não dilatei. Eu estou fechada.

Eu não pari.

Depois disso foi apagamento e eu pedi pelo amor de deus, me entorpeçam. Me deem remédios, me deem anestesia. Quero o alívio de não ter que sentir mais nada. O alívio de não ter que me abrir.

Chorei a derrota. Me abriram e você foi tirada de dentro de mim. Devolvida pro meu colo. Tão distante. Eu continuei com dor. Não quero sentir dor, pedi. Eu ainda peço. Eu me entorpeço, porque não suporto. A dor de ser mãe.

Eu continuo com dor.

Os dias passaram rápido e devagar. Eu ainda entorpecida. Me deixem sozinha, dizia, quando eu não queria ficar sozinha. Eu não preciso de ninguém, dizia, quando eu precisava de alguém. Que não fosse eu. Nem você. Eu não sabia o que eu queria ou precisava. Eu ainda não sei.

Você não estava mais dentro de mim, você estava do lado de fora. Inteira. Eu, pela metade. Com dor, muita dor. Te dava meu peito, com dor. Te dava meu colo, com dor. Te dava minhas lágrimas, sempre com dor. E até quando a dor passou, ela continuou dentro de mim. A solidão dolorida de ser a única mãe que você tem. A solidão dolorida de não ser a mãe que você precisa. Nunca me senti tão só como eu me sinto mãe. Mesmo estando o tempo todo acompanhada.

Eu me sinto só.

Você, que dependia de mim. Que depende de mim. Cada vez menos. Não consegue me suprir a solidão de sermos duas. Você fora de mim. E eu cada vez mais só.

Queria ser o pai, dizia. Ainda digo. Queria deixar essa criança com a mãe. Mas a mãe era eu, faço graça disso, eu sei. A mãe sou eu. Não tem como não ser. E isso dói. Me dói saber que você só tem a mim. Você merecia ter alguém melhor.

Mais dilatada.

Eu tinha saudade de ser inteira. Ainda tenho. Não quero deixar você sair. Eu ainda não sei como dilatar, mas eu preciso deixar você sair. Para que não me tirem você à força, de novo.

Dessa vez eu sei que será sem anestesia.

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Carla Guerson
Revista in-Cômoda

Feminista, escritora, geminiana, mãe, leitora compulsiva. A favor dos incômodos. Autora dos livros “O som da tapa” e "Fogo de Palha".