Direito de esquecer

Tudo passa

Raquel Carvalho
Revista in-Cômoda
3 min readJul 6, 2019

--

Foto de Ali Yahya no Unsplash

Eu evito falar sobre amor por aqui, porque sabe como é, incorre-se no risco de ter um ex-alguém que vai se encaixar perfeitamente naquela crítica, naquela mágoa, naquele pedacinho de história. Que bem, é sim para quem quiser vestir a carapuça, mas é tanto para meu último affair quanto é para o meu primeiro, e esse seria Lucas, aluno da 1ª série do Jardim Escola Tic Tac em 1995. Perceba, eu fui acumulando várias camadas de impressões sobre o amor, e hoje posso dizer que tenho em mãos uma colcha de retalhos, vários trechos de narrativas que são diferentes, mas todas guardam uma coisa em comum: eu. De forma que tudo o que eu resolvo contar é muito mais sobre mim do que sobre o outro, qualquer quem seja o outro da vez.

Eu gosto do conceito de clean breakup, que em resumo, é um término limpo, um corte reto, sem espaços pra retalhos ou retaliações, uma decisão tomada sem oportunidade de arrependimentos futuros. Terminar e não voltar, não ter conversas e re-conversas sobre o porquê das coisas. Não que eu seja heavy user do conceito, eu só gosto bastante da ideia. Me parece bem prático não me consumir por qualquer coisa que exista, porque no fim das contas tudo passa.

Mas em 1995 quando o menino da escola que eu gostava não correspondia, eventualmente o destino nos dava novos lugares no mundo, graças a Deus, lugares distantes em turmas diferentes. Ou era alguém que mudava de escola, ou se você tivesse sorte mesmo, mudava-se de bairro. E aquele amor falido ficava só na memória, que não sei se felizmente ou infelizmente, com o tempo também ia ficando mais desbotada, até tornar-se pouco importante.

Na linha do tempo, acredito que tenha sido por volta de 2006 pra cá, nunca mais se pode esquecer nada. A gente passou a fornecer voluntariamente informações sobre nós mesmos para plataformas e ninguém nunca mais pode se desvincular de ninguém. Não dá mais pra ir a um lugar onde ex-my-love não esteja, pois é uma epidemia de onipresença coletiva.

Se alguém me descrevesse o ato de fumar, como sugar a fumaça gerada pela queima de várias substâncias, e encaminhamento deliberado dessa fumaça para seu pulmão, eu iria dizer ECA por que alguém faria isso? Mas as pessoas fazem e sentem prazer em fazer. Tem uma química envolvida, claro, mas acho que também é assim com as redes sociais. Alguma química a la brilho eterno de uma mente sem lembranças atiça a curiosidade, o sistema de recompensa, whatever, essas coisas que eu já vi e ouvi várias vezes, mas pareço nunca entender completamente.

Se colocassem uma faixa de aviso nos perfis de ex-affairs, será que nos impediria de sermos tão abelhudos? Qual a eficiência de te avisar que se você fumar, você corre o risco de ficar impotente, e se olhar um perfil corre o risco de nunca completamente esquecer essa mágoa, por menor que seja? É curioso que precisemos ser lembrados de coisas tão óbvias do tipo: não respire substâncias cancerígenas, pois adivinha, elas podem te causar câncer. Ou procure não favorecer a lembrança daquilo que você deseja esquecer.

E se a gente não esquece, o negócio não passa, como o ditado promete que tudo, tudo passa, nada fica. A memória é uma forma de manter as coisas vivas, ainda que em coma e respirando por aparelhos, com a probabilidade de 99,9% de nunca acordar.

Me pergunto se eu poderia processar o Mark Zuckerberg por obstruir o meu direito de eutanásia das lembranças.

--

--