Entre vírgulas e dois-pontos: Clarice.

glaucia secco
Revista in-Cômoda
4 min readAug 25, 2017

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Qualquer um que me conheça minimamente sabe de minha adoração por Clarice Lispector e seus livros e sua linguagem. Tenho um apreço especial por uma obra: “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres”. O romance traz uma protagonista, Loreley, que, em busca de si mesma, conhece Ulisses, um professor de filosofia, e passa a aprofundar suas questões e suas idiossincrasias cotidianas.

Nesse livro, Clarice nos dá uma grande lição sobre a vida: a história a ser contada é sempre o durante. A narrativa inicia-se com uma vírgula e termina com dois-pontos.

Na língua portuguesa, a vírgula tem uma função primordial e principal: segmentar as informações, separando-as, ao mesmo tempo que destaca cada uma delas, dando-lhes importância, mas mantendo-as agregadas à frase que compõem. Os dois-pontos funcionam como anunciantes daquilo que se quer explicar, dizer, mostrar, elucidar, destacar. Ou seja: tanto a vírgula quanto os dois-pontos demarcam uma pausa na travessia dos enunciados que ainda estão por se complementar.

Assim é a história entre Loreley e Ulisses: uma pausa na travessia de seus cotidianos que ainda estão por encontrar sua completude. Todo o livro recorta, como em uma fotografia, um momento essencial da vida dos dois, mas não resume o que é a vida em sua completude. Afinal, a vida é muito mais vírgulas e dois-pontos do que pontos finais.

Deve ser por isso mesmo que fui arrebatada por esse romance desde a primeira leitura, e o utilizei como base de meu próprio livro. Hoje, consigo enxergar, do auge de três décadas, que minha vida inteira-metade foi uma conjugação de ciclos iniciados pelo meio e não terminados pelo fim.

Les Mariés de la tour Eiffel (1938–1939, Chagall)

Le peintre à la Tour Eiffel

Com uma vírgula, pausei minha liberdade infanto-juvenil para começar a trabalhar. Aos 12 anos, minhas sequências frasais eram regidas por contas, estoques, organização doméstica e notas escolares. Entre uma escola e outra, muitas vírgulas foram escritas. Não completei nenhum ciclo escolar inteiro. Na primeira escola, fiquei do Jardim à 2ª série. Na segunda, estudei a 3ª e a 4ª. Na terceira, estudei da 5ª à 7ª. Na quarta, a 8ª série e o 1ª ano do Ensino Médio. Na última, o 2º e o 3º anos, seguidos do pré-vestibular. Na faculdade, comecei em Letras, português e literaturas, e, no 3º período, mudei para português e espanhol. No último ano de universidade, antecipei algumas disciplinas e me formei um período antes de minha turma. Ou seja: terminei antes do ponto. Com a vida pessoal, não foi muito diferente. Comecei a namorar muito antes da frase da infância terminar. Casei-me muito cedo, por consequência; e, por consequência, divorciei-me antes que pudesse me tornar uma adulta independente e madura para compreender, nas palavras de Clarice, que um “‘eu te amo’ era uma farpa que não se podia tirar com uma pinça”. A partir daí, iniciaram-se os dois-pontos.

Assim como em uma narrativa, os dois-pontos anunciam falas e pensamentos, permiti a liberdade de expressão que, outrora, fora segmentada pelo conjunto de vírgulas que se instaurou em meu cotidiano. Ganhei o tablado da sala de aula, as páginas de um livro e o espaço online dos blogues. Mas as vírgulas insistiram em reaparecer. Foram feitas de vírgula as pausas do mestrado. Essas vírgulas me transportaram a novos dois-pontos: independência financeira e autonomia intelectual. Nesse período de pausa, alimentei um belíssimo capítulo de minha história sem final: conheci um lugar mágico com pessoas maravilhosas que me proporcionaram trocas afetivas, pedagógicas e humanas tão eternas que nenhum ponto final daria conta de interrompê-las.

Não posso mentir: entre uma vírgula e outra, desejei muitos pontos finais dessa história de três décadas. Mas Clarice, e seu livro dos prazeres, esclareceu-me tudo: era necessário viver apesar de.

Quando leciono gramática, uma de minhas aulas favoritas é a de conectivos, na qual diferencio as conjunções adversativas das concessivas. Ambas têm o papel de trabalhar com as oposições semânticas das frases, respaldando-se em vírgulas a fim de segmentar as ideias. O que as diferencia, entretanto, é a importância dada às informações contidas nos períodos. As adversativas promovem uma oposição, dando enfoque à ideia que provoca o choque de expectativa na frase. As concessivas, por sua vez, demarcam oposição, suavizando o fato que promove a quebra de expectativa, o que, por sua vez, torna palatável todos os acontecimentos inesperados. Por isso, o “apesar de” anuncia que pedras rolarão pelo caminho, mas há que se continuar. Afinal, o nosso terrível dever é continuar. “Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente.”. O barco da pontuação da vida segue e mais capítulos estão para serem escritos. As pausas — longas ou curtas — dependerão da escolha dos pontos e dos conectivos. Preferirei as vírgulas ou os pontos finais? As conjunções adversativas ou as concessivas?

O capítulo seguinte é uma vírgula nova, cheia de surpresas e que dispensa, por si, qualquer outro ponto. Ela não marca uma interrupção, está cheia de continuidade e sequenciações. Então, decido:

Gal.

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glaucia secco
Revista in-Cômoda

geminiana. feminista. antifascista. professora. escritora. doutoranda em literatura. fascinada por pessoas inteligentes.