ENTREVISTA

Gabriel Schincariol Cavalcante
Revista in-Cômoda
Published in
3 min readJun 15, 2018

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Van Gogh

14–6–18/15–6–18, sp

Não se começa uma história com uma pergunta, mas é assim que essa começa: o que é a vida?

E a história, em si, é a resposta para a pergunta.

Ah, a infinidade de respostas. Varia de acordo com o interlocutor, com a idade do interlocutor, a cor do interlocutor, o sexo do interlocutor, a língua falada pelo interlocutor, o sobrenome do interlocutor. Se estamos a perguntar isso para o Aurélio, o compêndio de definições, não o homem, Buarque de Holanda, temos que vida é o período de tempo que decorre desde o nascimento até à morte dos seres. É uma definição, mas não presta, porque é esse período de tempo que nos interessa, o que se passa, e isso é quase impossível de se reduzir em um verbete.

Agora, se olhamos um bebê nos olhos e perguntamos: o que é a vida?, bem, ele não dirá nada, porque é um bebê, mas podemos assumir a resposta. Vida é a teta da mãe, os beiços sugando o bico do peito e a boquinha se deliciando com o líquido quente, insaciável. É abrir e fechar os olhos e chorar quando sente fome ou dor, e então a vida vem lhe acudir, pegar nos braços, ninar. Vida é os braços da proteção, é a mão que apoia os primeiros passos, que aplaude o corpinho que se põe de joelhos e engatinha, divertindo-se com toda a atenção. Vida é descoberta, ver tudo pela primeira vez, ficar surpreso, ficar curioso, descobrir o nome das coisas, descobrir a função das coisas, depois olhar para elas com desinteresse.

Mas não estamos perguntando isso para um bebê. Se perguntamos para um homem feito, a vida se traveste em uma infinidade de fantasias, próprias das crianças sonhadoras, mas muito presentes na cabeça de gente crescida. Não é só respirar e comer e chorar e fazer tudo pela primeira vez. É crescer e se maior e se tornar, a cada dia, a cada hora, cada vez maior, obtendo o sucesso, ouvindo sempre mais palmas, tendo a conta recheada, sentir e aliviar o tesão em outros corpos e bocas, ou se masturbando sozinho no meio da noite, passar uma semana, mês, ano, em outro país, chegar cedo em casa, a tempo de tomar um cerveja e ver futebol, comprar roupas novas, maquiagens novas, livros novos, ler livros, escrever livros, escutar música, tocar música, envelhecer, trabalhar, ser reconhecido, procriar, dar andamento à espécie humana, vai saber o porquê, sobreviver.

Olhar para a paisagem e dizer: isso é que é vida.

Mas não é.

Se nos perguntássemos isso, para nós, que estamos narrando essa história, a resposta seria uma só. Vida para nós é contar histórias. Não existimos fora daqui, não temos vozes, nossa voz é a sua, não temos rostos, nossos rostos são os rostos que você nos dá, nosso ofício é único e a ele dedicamos toda a nossa existência, e nós não existimos, só existimos quando você põe os olhos nesse texto e lê e coça a cabeça tentando entender toda a metalinguagem.

Mas também, ninguém existe senão a partir de você, que é o único referencial que existe para toda ação que testemunha, toda história que ouve, toda cena que assiste, todo beijo que dá, toda música que escuta, toda vida que acompanha. Você é o centro do mundo, e todo o resto, também.

Ainda, não é para você essa pergunta. Nem para os bebês, nem para os homens feitos.

É para ele, que está na cama do hospital, sedado na Unidade de Terapia Intensiva. Ele, que sabe falar, mas não pode. A resposta não é dita em palavras, o símbolo é outro. Vida aqui é a linha que corre no monitor esverdeado, vida é o que reproduz cada monitor, alimentados pelos fios distribuídos em seu corpo magro, sugando suas veias, seus batimentos cardíacos, suas sinapses, traduzindo a vida em números, índices, ciência. Cada apito emitido pelas máquinas é sinal de vida, porque vivo é não estar morto.

E ao lado dele, há a vida suspensa. Ela, que está de olhos abertos e vê bem cada monitor, segurando a mão magricela e fria, o corpo tenso, a respiração pesada, as costas doendo, e ela não sabe nos dizer o que é a vida, a não ser esperar e ter medo.

E nós também não tivemos coragem de incomodar.

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