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Esbocei um sorriso que ninguém viu

Devagar e Sempre

Fabio Pires
Published in
4 min readFeb 24, 2023

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Naquele momento eu só sabia que precisava voltar.
Chamavam pelo meu nome.
Uma espécie de sussurro, mas que ecoava alto demais nos meus ouvidos a ponto de me fazer apressar os passos.
Nunca tive medo de vozes. Na verdade pouco dava atenção a elas, apesar de tê-las ouvido o bastante, mas esta em si me incomodava e eu precisava saber do que se tratava.

Imprimia passos apressados que alternava com momentos de pequenos trotes.
Bem ritmado e em compassadas pisadas fortes que deixavam marcas na terra úmida, como se tivesse alguma convicção do caminho a seguir.
Desviava de pequenos obstáculos e continuava obstinado no meu objetivo.
Qual o objetivo? Como chegar? E em qual lugar? E depois?
O depois ficaria para o depois, como sempre fiz.

Já estava ofegante, mas sequer pensava em descansar.
Arfava e conseguia me ouvir assim.
Voltar era o objetivo, mas que caminho tomar?
Parece que enfim aprendi que o norte nem sempre é o caminho mais óbvio.

Abaixei a cabeça e segui entre árvores altas e frondosas, mas que ainda assim me deixavam ter algum acesso à luz.
Parecia ser dia, mas também poderia ser noite.
Luzes estas que pareciam me guiar a achar um caminho para sair dali.
Ouvia alguns sons de pássaros com cantos diferentes, dissonantes embora harmônicos.
Pareciam perto, mas não ao alcance da vista.

As raízes profundas das árvores deixavam seus corpulentos braços para fora do solo se transformando em mais obstáculos a serem driblados.
Encorpadas e altas, mas que ainda assim com galhos curiosamente baixos que deviam servir de poleiro para aves menores.
Não tinha como olhar muito tempo para o alto sem perder o caminho complicado que seguia repleto de lama e raízes atrapalhavam o caminho.

E havia olhos que seguiam meus passos.
Apareciam e sumiam na mata, como se tomassem conta do que fazia, ditassem meu rumo e me deixavam muito amedrontado.
Ah! E ainda tinha que desviar de formigas do tamanho da cabeça do meu dedão do pé e dos muitos sapos com enormes papadas que respiravam de boca aberta.
De pequenos tropeços a derrapadas na lama seguia adiante.
Só não sabia por onde ia.
Eu só ia e seguia para onde meu nariz apontava.

Ô idiota!

Carregava algo mais que o cansaço que batia nas pernas pela dureza do caminho.

-Mas, é lógico! Você carrega uma boa dose dessa droga que chamam de culpa, idiota!

De onde vinha essa voz seca, pigarreada e sem nenhuma compaixão?
Parecia vir de dentro de mim. Mono e sem muita sintonia.
Só o meu lado esquerdo dava espaço para essa voz se propagar.

-Ô idiota, tô aqui. Vai me dar atenção ou vai continuar me procurando?

Seguido de mais uma tossida seca típica de quem está nas últimas.
Consegui finalmente perceber alguém (ou algo) um pouco maior que a palma de minha mão, todo de preto, com rosto de linhas finas e delicadas, assim como eram suas mãos de onde saíam pequenos tufos de pelo ralo.
A voz, como disse, não tinha um pingo de compaixão e dominava meus ouvidos de uma maneira que ainda desconhecia.

O pior era que seus lábios não me eram visíveis. Ou boca. Tampouco os dentes.
Parecia que tinha uma ligação direta com meu cérebro ou ouvidos, sei lá.
Seus olhos eram esbugalhados e de íris escuríssima que lembravam algum felino realçado pelo olhar de quem mais observava do que mostrava.
Sentado debochadamente em meu ombro esquerdo comandava parte das minhas ações ainda que eu sequer tivesse percebido.

-Quem diabos é você que tosse tanto e o que faz no meu ombro feito um papagaio de pirata?

Não o enxergava nitidamente, embora sentisse seu peso minúsculo em meu ombro.
A imagem, nesse momento, era turva por um nevoeiro branco com se fosse um véu.
Compreendia seu peso, seu tamanho e estas poucas características, mas não conseguia detalhar o que via de fato, era algo fora do limite do que eu tinha como compreensível e explicável.

-Você me conhece, idiota. Sou aquele que todo dia lhe diz: “Vai que tá na hora.”
Quanto à tosse, ela é mais sua do que minha.
E não precisa ter medo dos olhos daqueles que lhe observam, são os olhos de Caipora que se multiplicam em todo lugar.
O trato é simples: Se nenhum mal você fizer nenhum mal receberá.
Assim como lá é assim como cá.”

Sempre achei que aquela voz era minha, já esse modo imperativo não reconhecia. Nunca fui assim. Não que me lembrasse. Não, não era meu mesmo.

-Faça o que te falo, siga este caminho logo depois do rio que corre para cima e lá tem quem lhe ajude a voltar. Só não sei para quê você quer voltar…

E mais uma vez a voz entrava no meu raciocínio em uma estranha ligação direta entre o que ouvia e o que deveria fazer.
Respondi de bate pronto:

-Volto porque me chamam e o sinal é cada vez mais forte, cada vez me puxa mais, mas na verdade nem sei o que faço aqui e nem que lugar é este!

-Você está aqui porque tinha que estar. Entender os porquês não é seu trabalho, mas seguir adiante através deles sim. Vaitiembora!

Neste momento já não sentia o peso no ombro e a figura de formas finas já não estava mais comigo.
Olhei para trás em busca daquela que foi minha companhia insólita para saber se realmente estava sozinho.
Sozinho de fato não estava porque os olhos ainda me acompanhavam.
Minha respiração se tornava mais ofegante conforme caminhava rio acima que naquele momento me aparecia aos olhos.
E eu apenas obedecia. E andava.

CONTINUA.

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Fabio Pires
Revista in-Cômoda

Escritor com dois livros lançados, Editor, Redator, Tradutor e escreve na Impérios Sagrados, no Projeto C.O.V.A e na Revista In-Cômoda.