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Esbocei um sorriso que ninguém viu — Final

Sileno, o Sátiro

Fabio Pires
Published in
8 min readFeb 25, 2023

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A noção de tempo era nenhuma.
Não sabia dizer se tinha passado um minuto ou um dia nessa caminhada, só sabia que a impressão de ser observado pelos olhos dos caiporas aumentou.
Não os via. Eram muito rápidos.
Não os via, mas os percebia presentes como sombras.
Não sabia se me protegiam ou apenas me vigiavam.
Não sabia o que queriam e em certos momentos era melhor não ver.
Quem não vê teme menos.

Até que, beirando o rio que corre para cima, finalmente me apareceu aos olhos algo que conseguia de fato enxergar e entender as formas.
O fitei em silêncio enquanto ele andava sorrateiramente fingindo que não tinha sido visto.
Escorado no tronco de uma gigantesca árvore e de posse de uma botija de barro em uma das mãos esta criatura agora me encarava com desdém.
Redondo, de pernas curtas, com trejeitos rudes, lábios excessivamente grossos, além de possuir um nariz grande de maneira desproporcional ao rosto.
Me arrisquei a pedir ajuda para confirmar o caminho que devia seguir.
Não houve resposta. Nada. Apenas me encarava com desprezo.

-Ei! Você pode me ajudar?

E nada vinha desse ser esquisito e disforme.
A não ser os longos goles na botija que não parecia findar seu conteúdo, seguido de um arroto longo e gutural que sepultou minha esperança de ajuda.
Pensei em seguir adiante, mas algo me prendia a aquela criatura bizarra que não me deixava conduzir meus pés.
Pés que agora estavam atados com um nó em 8 por uma corda grossa, daqueles que nunca saberia desatar.
A impressão de que muitos me observavam aumentou.
Pareciam milhares de olhos ao meu redor observando o desenrolar daquela situação:
A minha total incapacidade de me mover com a má vontade dele em responder.

-Por que me prendeu aqui? Tenho que voltar e logo, se não for me ajudar ao menos não me atrapalhe mais.

Após mais um longo gole em sua pesada botija de barro liso, limpou o canto da boca com o dorso da mão e finalmente falou:

-Não costumo dirigir a palavra aos humanos, mas aqui você não é mais um. Desse modo gastarei poucas palavras com você e pouco é melhor do que nada.

Tentava se erguer com certa dificuldade, se apoiando no corpo da árvore enquanto tentava equilibrar os litros de álcool que balançavam em seu cérebro.
E de pé ele era ainda mais amedrontador e desagradável.
Realmente assustador.

-Para conseguir achar algum caminho deve me convencer que merece a minha informação.
Farei uma pergunta e me responda com a sinceridade de um trôpego bêbado, se eu gostar da resposta, o que já digo ser muito difícil, terá o direito de saber algo do caminho a seguir.
Agora me diga. Para quê você quer voltar, miserável?

Será que aqui todos se tratam assim? De idiota fui promovido a miserável e por incrível que pareça esse xingamento fazia mais sentido.
Fiz cara de quem não esperava uma sabatina naquelas condições. desviei do bafo de álcool que conseguia alcançar minhas narinas e estiquei um lado do meu bigode ralo e sem vida, como se fosse me fazer raciocinar melhor assim.

Assim como você, leitor, eu também não entendi a ideia de amarrar os pés e deixar os braços soltos.
Muita coisa ali não fazia sentido.
Nada fazia sentido, na verdade. Ainda mais sem uma explicação razoável e isso era algo que eu não tinha.

-Ouço uma voz que me chama, que martela minha cabeça e percebo que precisam de mim — respondi convictamente.

Olhei para meus pés e um par daqueles olhos que me acompanhavam desatava o laço que me prendia e saiu em disparada, dentre vários outros que permaneciam visíveis a mim como faróis iluminados por dentre a mata que estava ao meu redor.

-Eu, Sileno, não esperava nada muito rebuscado de um humano.
De um ignóbil como todo ser humano é.
Apenas entenda a chance de sair da cegueira que a maioria de vocês faz questão de ostentar e levantam com orgulho.
Desapareça da minha vista pelo campo das macieiras, desvie o olhar do que não pode ver antes da hora e vá, imbecil.

Ser ofendido já não era um problema desde que pudesse seguir adiante.

Um Sphynx no campo das macieiras

Já não havia mais o rio que corria ao contrário para seguir, mas os olhares ainda me acompanhavam por entre a mata.
Sentia constantemente várias presenças e percebia o zumzumzum por entre estes que me observavam.
Tentei cantarolar algo para afastar o medo que começava a tomar conta e um breve refrão me ajudava a seguir adiante, conforme não avistava o campo:

“How could hell be any worse?
Life alone is such a curse!
Fuck Armageddon, this is hell!”.

Por incrível que pudesse parecer sentia falta da companhia do meu “guia” pendurado no meu ombro esquerdo e nem me importava mais em ser chamado de idiota ao final de cada frase.
Acreditem, até disso senti falta.
Naquele momento as árvores cheiravam a eucalipto e ao menos essa fragrância agradável me direcionava a algo próximo de sentir calma.

Chegando ao campo das macieiras me chamou a atenção a sua enorme extensão que ia até o final da minha visão, assim como o fato de estarem carregadas e perfeitamente perfiladas.
Parecia que tinham sido plantadas com auxílio de uma régua.
Milimetricamente separadas uma da seguinte.
Com vermelhíssimas e opulentas maçãs penduradas.
Pareciam pintadas a mão.

-Você quer mesmo voltar?
Lá não tem muita paz e você se lembra disso muito bem, tanto que estava cantando essa música agorinha mesmo…

Uma voz aguda e gingada vinha de dentro do campo.
Olhei por entre as pesadas árvores e avistei um gato pelado, de pele lisa comendo tranquilamente uma das maçãs, enquanto me olhava de cima a baixo.
Claramente me julgando pelo olhar e duvidando que eu realmente seguiria caminho.

-Já sei. Tenho que voltar, uma voz te chama e blábláblá…
Ouço isso desde que você chegou por estas bandas.

-Eu ainda não sei a razão, só sei que ouço me chamarem e me puxam como se fosse um imã o tempo todo. Acredite! Eu falo sério!

Seu olhar desconfiado tomava conta da cena.
Jogou fora a maçã quase inteira por cima do ombro e veio em minha direção como todo gato se locomove: Devagar, com a cauda ereta e me olhando fixamente com as pupilas bem dilatadas. Chegou à minha frente e em um piscar de olhos estava de pé como se fora um bípede natural.
Após um momento me cutucando o ombro direito com uma das unhas testando minha paciência respondeu quase desanimado:

-Pode ser que você ainda seja útil como dizem, mas você precisa ainda se ver e compreender quem de fato é. Após a última macieira entre na casa de teto alto e porta de madeira maciça. Lá você se espera.

Ainda me preocupava o aviso de desviar o olhar do que não podia ver.
Lá, talvez, pudesse descobrir do que se tratava.

Ainda não, idiota

Não bati na porta, já que sentia uma urgência que jamais havia sentido.
Abrupto e sem modos adentrei pelo espaço que desconhecia, mas que ainda assim me parecia familiar.
Com longos pilares de sustentação do chão ao teto, adornados em bases douradas e vincos trabalhados fincados no piso frio de pedras escuras e sem acabamento.
Algo entre o rústico e o elegante.

Tochas iluminavam parcialmente o local pelas laterais alocadas e enviesadas com suas bases fixadas nas paredes e suas chamas debruçadas pelo caminho demarcado por tapetes vermelhos.
No meio desse enorme salão uma vela diferente de todas que já tinha havia visto:
Era uma única vela de chama azul, colocada em cima de um candelabro de um braço dourado lindamente trabalhado que seguia do chão até altura dos meus olhos.

Automaticamente me distanciei da cena fixando meu olhar na chama que centralizava toda a luminosidade do local.
Chama esta que me guiava e conforme mais eu a encarava mais intensa ficava.
Assim como mais viva e presente se mostrava e se inclinava em minha direção.

Essa vela não derretia e não exalava o cheiro que usualmente distribuem nos ambientes que são acesas e só assim percebi o aroma de incenso forte que dominava o ambiente.
Tudo parecia estar em torno dela e em sua volta não havia sombras, ela apenas iluminava para cima sem rebater sua silhueta em qualquer lugar que fosse.
Ao contrário das tochas que se faziam perceber não apenas pelas chamas, mas também pelo clarão que tomava rumo diferente do ponto de partida da luz.

Nas paredes tinham quadros pintados à mão com molduras também douradas e clássicas, como se carregassem pinturas de uma realeza, porém as imagens seguiam um realismo assustador.
Em determinado ângulo se pareciam com fotos e de outro voltavam a ser pinturas.
Ainda distante não conseguia identificar o teor e os motivos destas pinturas, estava ainda tateando e tentando me localizar. Andando com certa timidez e a cada passo que dava mais detalhes me saltavam aos olhos.
Este salão agora aparentava ser ovalado como se indicasse o caminho que eu deveria seguir, porém além da atração que a vela exercia, algo delicadamente soprava em meus ouvidos:

-Comece pela esquerda. Siga no sentido anti-horário.

Aproximando-me pude perceber que era eu o personagem dos quadros.
Todas aquelas imagens eram minhas, mesmo em momentos que não havia ninguém por perto.
Mas estavam ali retratadas como se eu estivesse a vida inteira com um paparazzi-pintor a tiracolo e em todas as fases da minha vida.
E não precisava de legenda:
Eram momentos memoráveis, já outros eram bem embaraçosos.
Alguns que nem fazia muita questão de me recordar e outros que me deliciei em saber que haviam sido registrados.
Uma autêntica montanha russa de emoções vividas quadro a quadro.

O silêncio e o incenso reforçavam minha atenção aos quadros e momentos exibidos.
Exatamente no meio dessa mostra me deparei com um espelho de moldura trabalhada na madeira, onde o refletido era eu e ainda assim fiz alguns movimentos para de fato confirmar se tratar de um espelho.
Lembrei-me do aviso e desviei o olhar no mesmo momento que o meu companheiro de viagem finalmente reapareceu sentado no meu ombro e assistindo a este momento disse:

-Este é você agora, idiota. Ainda não entendeu o que você tem ainda que fazer?

Como que ele não aparecia no reflexo? Foi meu primeiro pensamento.
“Idiota” serviu perfeitamente para o momento.
Como não percebi antes?
Segui adiante caminhando e observando todas estas molduras que precisavam de um personagem.
Todas elas tinham fundo. Tinham cores. Tinham profundidade. Tinham vida.
Eram de lugares que eu conhecia e outros que não, só eu que não estava nelas.
Havia uma última adiante pendurada de costas para mim e percebi logo que esta era a que não deveria ver. Quando pensei em perguntar, do meu ombro, logo depois de uma tossida leve ouvi:

-Ainda não. Idiota. Daqui você volta. Faça valer a pena.

O Sorriso que ninguém viu

Uma mão envelhecida me conduziu delicadamente pelos ombros.
Ainda me recordo bem da música suave de fundo e de ter finalmente atravessado o salão como se flutuasse.
E percebi que sempre se parece com um sonho quando as coisas não acontecem de maneira linear.
Já este foi linear e ainda assim parecia um sonho.

Do lado de fora o vento acariciava meus cabelos a ponto de sentir cada sopro.
Em seguida voltei a sentir o cheiro de eucalipto.
Aquele mesmo que me acalmou antes.
E me acalmou desta vez mesmo que atrapalhado por sirenes ensurdecedoras, chacoalhadas de asfalto desnivelado e por alguns cacos de vidro que cismavam em beliscar meu rosto.
Esbocei um sorriso que ninguém viu.

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Fabio Pires
Revista in-Cômoda

Escritor com dois livros lançados, Editor, Redator, Tradutor e escreve na Impérios Sagrados, no Projeto C.O.V.A e na Revista In-Cômoda.