Arte de @ilustrapeu

Espelhados em Transe Narcísico

Lucas Arcelino
Revista in-Cômoda
Published in
17 min readJul 29, 2021

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“A imagem apagada que se formou a princípio no espelho era a sua, mas lentamente foi se modificando e transformou-se no rosto impressionante da Deusa, com sorvas atadas à testa.” — Marion Zimmer Bradley

Um teste empregado para medir o desenvolvimento cognitivo de crianças, e até de animais, é o de coloca-los diante de um espelho e averiguar sua reação. O reconhecimento de sua própria imagem refletida, indica que a criatura consegue discernir que aquele estímulo visual não é outra criatura, e sim apenas seu reflexo. É impossível enxergar o próprio rosto sem o auxilio de uma superfície reflexiva, logo, ao reconhecer-se em um espelho, há uma mudança de perspectiva com relação a si, que se desenrola em profundos questionamentos existenciais e sociais. possivelmente dessa forma: O que é isto que estou vendo? Este sou eu? É assim que os outros me veem? Esta aparência irá me trazer bênçãos ou maldições?

Na sociedade em que vivemos, onde impera o poder da visibilidade, dentre o agregado de signos que nos representam para nós mesmos, talvez essa imagem ocupe o cerne identitário de nossas personalidades. A criatura de Frankstein[1] só se dá conta de sua sina após ver-se espelhado em um lago. O espelho ao mesmo tempo antecipa seu destino e consolida, para ele, a ideia de que era um monstro. Parecer um monstro, e ser tratado como um por toda sociedade, o fez tornar-se aquilo. Soa familiar?

Não é de hoje que as imagens visuais vêm ocupando um posto elevado de representação da realidade dentro das sociedades ocidentais. Catarina Moura[2] escreve que durante a renascença há uma mudança no modo de ver que privilegia a visão centrada na perspectiva do observador. A Ilusão foi o efeito provocado por essa nova perspectiva linear moderna nas pinturas. A sensação de profundidade dada às imagens planas confundiu realismo com realidade. Criou-se a ideia de que através da visualização e do cálculo das formas e da disposição das coisas no mundo, seria possível desencanta-las e entendê-las a partir de seus modelos. O saber sobre o mundo se distancia do mundo e é substituído por sua aparência abstrata.

O aspecto ilusório da imagem ganha outras camadas com o advento da câmera fotográfica. Benjamin fala do despertar de um “inconsciente óptico”[3] que se revela para a câmera, através de seus mecanismos de amplificação e retardo da imagem, que nunca foram antes explorados pela experiência humana. Essa sensação era tida com extrema estranheza nos primórdios da fotografia, principalmente quando voltada para retratos de rostos humanos. Os espectadores tinham grande receio daquilo que viam, ou melhor:

“(…) as pessoas tinham medo (…). Ficavam intimidadas pela nitidez das figuras e achavam que aqueles pequenos rostos nas fotografias nos podiam ver a nós, de tal modo ficavam perplexas com a estranha perfeição e incrível fidelidade à natureza dos primeiros daguerreótipos”[4].

O incômodo provocado ao se encarar um retrato naquela época, era a sensação de que para se atingir aquele assustador nível de semelhança, não poderia estar contido ali apenas a imagem do modelo fotografado. Tal similitude só seria possível aprisionando parte de sua essência nas chapas fotográficas. Os pequenos rostos que os encaravam de volta, traziam consigo espectros de momentos do passado, fragmentos de alma congelados no tempo.

Essa sensação vem do poder de analogia do qual a fotografia é dotada, que ultrapassa uma simples imitação ou cópia, ”a essência da fotografia e, a partir dela, de toda a imagem técnica seria assumir-se como alucinação verdadeira, na medida em que, sendo imagem, parece conseguir duplicar — e, no mesmo gesto, revelar — o real em todos os seus aspectos. ”[5]

Na medida em que nos acostumamos com as fotografias, muito deste receio e estranhamento se perdeu, mas o encanto ilusório permaneceu, a foto tornou-se meio de massa e abandonou todo valor cultual que ainda possuía com relação a rostos humanos, em detrimento de seu valor expositivo. A economia capitalista vai assimilando todas as esferas da vida social, transformando tudo em mercadoria, e o ser perde espaço para o ter, que por sua vez, perde espaço para o parecer. Abrem-se as cortinas, acendem-se os holofotes… bem-vindos ao espetáculo.

Segundo Guy Debord, nas sociedades em que se estruturam as modernas condições de produção, instaura-se um monopólio da aparência. O domínio das mercadorias expande-se capturando tudo aquilo que era antes vivido, transformando-o em representação e produto. Dessa forma o “espetáculo”[6] é uma objetivação permanente, de uma visão de mundo no tempo histórico que nos contém. As relações sociais entre as pessoas passam a ser mediadas por essas imagens e “quando o mundo real se transforma em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico”[7]

O espetáculo se vale da tradição ocidental de compreensão da realidade através das categorias do ver, o que potencializa o individualismo e barra o diálogo. O efeito dessas barreiras é o surgimento de multidões solitárias, que se reúnem apenas sob os holofotes do espetáculo. Nesse palco se fabrica concretamente a alienação, ditada pela máxima “O que aparece é bom, o que é bom aparece”[8], como uma espécie de mantra da superficialidade. Se interioriza nos sujeitos que os objetos/pessoas contemplados, as imagens dominantes, representam a realidade concreta. “Quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo. ”[9]

As eras midiáticas vão passando e reconfigurando o campo visual humano. Os meios de comunicação de massa consumam o espetáculo espalhando suas imagens mercadoria por todos os espaços. “Não apenas a relação com as mercadorias é visível, mas não se consegue ver nada além dela. ”[10]. Os quadros, e fotografias transpõe-se em novas telas: as ecrãs; o analógico dá lugar ao digital, e os espelhos passam a ser “black mirro’s[11], que se tornam o centro do universo do cidadão.

Esse novo universo, como coloca Levy, se constrói à deriva em um grande dilúvio de informações, de natureza exponencial, explosiva e caótica, que pode ser denominado ciberespaço[12]. Sobre bases tão fluidas é difícil orientar-se ou manter o equilíbrio, e a imersão nos mares de data é quase inevitável para os internautas. A infraestrutura que sustenta tal universo, isto é, as redes mundiais de computadores, e as tecnologias de digitalização de dados, permitiu a criação da hipermídia, que fragmenta e homogeneíza a informação em bits; com isso é possível comprimir e descomprimir, codificar e decodificar. A nova mídia é híbrida e formatável.

Tudo isso, como coloca Santaella, provoca impactos psíquicos, culturais, científicos e educacionais na sociedade global.[13] Nesse território virtual, desenvolve-se modos de comunicação, práticas compartilhadas, valores e esquemas de pensamento que podem ser entendidos como cibercultura. As principais marcas que definem a produção cultural dessa era midiática são: o imediatismo, a interatividade e a abundância.

Como não poderia ser diferente, as imagens, tal qual um simbionte, alteram sua estrutura formal para entrar em intima harmonia com este ambiente. São abundantes, pois dispensaram diversos fatores materiais na sua transição para o suporte digital — como o filme fotográfico, tintas, películas, etc. — e ainda podem se multiplicar e se mesclar criando uma infinidade de montagens. São imediatas, tanto no âmbito da produção quanto no consumo, porque, não raro, demoram apenas o tempo de um “click” para estarem prontas, como também, retêm a atenção por poucos segundos em feeds nas redes sociais. E são interativas, já que se pode reagir a uma foto, guardá-la, compartilhá-la, modificá-la etc.

As tecnologias viabilizadas pela computação gráfica permitiram a manipulação de fatores plásticos que nunca haviam sido possíveis antes. Mais uma vez, Benjamin talvez diria, que se desperta um novo inconsciente óptico revelado pela técnica. A digitalização fragmentou a informação visual em pequenas partículas, chamadas pixels, e entendendo como brilho e matriz de cores funcionam, baseado em cálculos que simulam o comportamento da luz em simulações de objetos virtuais 2 e 3D, finalmente o ser humano pôde brincar de deus.

Diferente da fotografia tradicional, as imagens digitais não necessitam de referentes reais. Isso significa que é possível moldar, ou criar do zero, ícones desvinculados do mundo concreto. Através da computação gráfica é possível criar seres fantásticos, paisagens oníricas, corpos “perfeitos”, dentes impossivelmente brancos, etc. Algoritmos já geram rostos de pessoas que não existem(!). Não há mais barreiras daquilo que se pode simular, “as imagens, virtualmente, constituem agora um único hiperícone, sem limites, caleidoscópico, em crescimento, sujeito a todas as quimeras”[14]. O problema é que, em uma sociedade onde opera o monopólio da aparência, se perde a noção de que essas imagens são construções, e instaura-se uma civilização da simulação total.

Embora, a partir dessa metamorfose digital, tenham surgido também campos de experimentação plástica que provocaram reinvenções artísticas e novas experiências visuais, a imagem hegemônica que alimenta as telas e captura os olhares famintos é o simulacro. Segundo Baudrillard, o simulacro é a dissuasão de todo processo do real por seus modelos hiper-reais, isto é, mais reais que o real. São imagens dotadas de um poder assassino, que liquida todos os referenciais e ressuscita artificialmente nos sistemas de signos. [15]

Sem referência ou substância as imagens tornam-se vazias, superficiais, sem mistério.[16] Aquele medo e estranheza que estava presente na atitude de uma pessoa ao encarar as primeiras fotografias, aquela sensação de que havia algo mais ali, não existe mais. São imagens obscenas, pois nada ocultam, não há margens de interpretação, camadas de sentido. Elas são o que elas são, e na maior parte das vezes o que elas são é publicidade.

A publicidade é, por fim, o espetacular simulacro. A multiplicidade exponencial de imagens superficiais, provocam a deflação dos sentidos.[17] Isso porque, independente do conteúdo de uma imagem publicitária, o sentido passado é sempre o mesmo: Compre isto! O “Isto”, pode ser qualquer coisa; um objeto, uma ideia, um estilo de vida. Ela explora os mecanismos imagéticos e com isso “um certo carácter superficial, fragmentado e/ou desprovido de contexto, esta disciplina enfatiza o poder da imagem para a comunicação e a persuasão sob a capa de uma permanente sedução. ”[18]

Para mascarar a ausência de sentidos e capturar a atenção do espectador, essas imagens são sempre dotadas de uma alta intensidade sensorial. Brilho, cores, ângulos, formas, tudo é operacionalizado e digitalmente ordenado para provocar o desejo. Diante destes ícones hiper-reais as experiências vividas no cotidiano aparentam perder suas nuances e tons, ao ponto de, como destaca Baudrillard, toda coisa, acontecimento, ou pessoa, precisar ser fotografada, com o intuito de atribuir mais realidade à percepção vivida de mundo.[19] Surge então, no observador, um fascínio melancólico por esses simulacros, advindo da sensação de desaparecimento do real, e de si próprio.

Segundo Mc Luhan o homem fascina-se por qualquer extensão de si mesmo em qualquer material que não seja o dele próprio.[20] Sob este encanto narcísico, e imerso virtualmente em um acervo oceânico de extensões, a união de um conjunto de fatores culmina numa compulsão, que se transforma em vício[21]. Estes fatores se entrelaçam de forma que são como uma coisa só. O primeiro fator é a lógica de consumo que se instaura no “capitalismo leve. ”[22] Já que tudo é mercadoria — e mais que indivíduos, somos consumidores — passamos a viver sob o imperativo do comprar. O segundo é a superexposição a imagens/simulacros de si, à que todos que estão inseridos no ciberespaço estão sujeitos. E o terceiro é a coerção à emissão que alimenta e retroage essa cadeia de auto sedução.

A insaciabilidade do sujeito/consumidor, que precisa comprar para ser, combina-se com um universo no qual ser é aparecer. Assim, compra-se para aparecer e nessa equação o ser se apaga. As imagens/publicidade, como principal produto, definem quem você é, semblantes e feições são os novos ídolos nas vitrines virtuais.

Para muitos, aparecer nessas vitrines não é opcional. Na era da cultura digital, o ciberespaço torna-se um ambiente central de interações e comunicação. Pessoas totalmente integradas a esse contexto, estruturam relações, intermediados por seus dispositivos (computadores, smartphones, etc.), em diversos âmbitos da sua vida, do trabalho ao ócio. Entretanto, a lógica que rege estes espaços é a da exposição. Interessa ao capitalismo que se esteja o tempo todo emitindo dados, pois a partir deles é possível refinar os mecanismos de sedução e impulsionar o consumo. Obedecendo a esta dinâmica, cria-se uma coerção à emissão, que pressiona os sujeitos a alimentar constantemente as redes consigo, ao ponto de tal emissão tornar-se uma “manifestação existencial de vida. ”[23]

O sujeito só sente que existe na medida em que emite. “Emitir significa ser percibido: ser. No emitir significa no ser no solamente presentir el horror vacui del echarse ocioso, sino el ser tomado por un sentimiento: de hecho, no hay yo en modo alguno”[24]. O indivíduo é impelido a emitir, mas o que emitir? Ora, aquilo que atrairá mais atenção, que será mais visto, ou seja, sua imagem. A figura humana se tornou o carro-chefe da exposição. Com isso, cada um tronou-se seu próprio “objeto-propaganda”[25], e enquanto propaganda, são imagens desprovidas de profundidade reflexiva, que obedecem a um padrão industrialmente definido.

Como afirma Han, a sociedade da exposição não aceita a negatividade do diferente, da alteridade.[26] São paradigmas que se estruturam em torno de superficialidades, como a “bela aparência”. Tudo aquilo que é oculto, invisível, interior, que não pode tornar-se objeto de exposição, não é importante. O que importa é aquilo que é visível, o que vende, o que é evidente; não interessa mais o rosto e sim a face, pois “a face é um rosto que se tornou transparente”[27], é uma mercadoria.

Em busca dessa exigência de beleza o sujeito sofre novas pressões, “a coação expositiva leva à alienação do próprio corpo, coisificado e transformado em objeto expositivo, que deve ser otimizado”[28]. A busca por este padrão de beleza leva a processos violentos, seja no próprio corpo, ou nas representações virtuais desse corpo, através das ferramentas de edição de imagens, capazes de criar modelos hiper-reais que se tornam a referência do que é belo. Nesse jogo de aparências, para boa parte dos habitantes do ciberespaço, o azar da criatura de Frankstein foi ter nascido numa época em que não existia Photoshop.

Na sociedade da exposição fomos submetidos à maldição de Narciso[29]. Àquele que a todos rejeitara e com todo ardor apaixonou-se pela imagem de si, por uma ilusão, um reflexo. Replicamos o fascínio por uma imagem sem profundidade, que se projeta na superfície lacustre, simulada nas ecrãs. Tal qual o jovem, perdidos em nós mesmos e fechados ao outro, condenamos novos ecos, que como a ninfa, se deterioram em grutas solitárias do ciberespaço.

É o mesmo grito de desespero que ecoa: “Oh! E se eu pudesse separar-me do meu próprio corpo! ”[30], entretanto, é irônico que o que o motiva possa representar completos opostos. Para alguns, fascinados e autoenamorados, cooptados pelo espetáculo, simulacros e mercadorias de si, o grito tem a mesma motivação que o de Narciso. Querem fechar-se ainda mais em si, perder-se em imagem, desmaterializar a existência dentro da aparência. Já para outros — e estes são os que literalmente acabam mortos — submetidos de forma coercitiva às vitrines, pressionados à exposição e submetidos aos duros julgamentos de seu físico e semblante, o grito se aproxima ao que emitiria Olímpico[31], sob semelhantes dizeres:

“Com esse focinho, Olímpico, perto de uma fonte

não vás, não vá dar -se o caso de olhares para a translúcida água

e tu, como Narciso, ao veres o teu rosto claramente,

morras, odiando-te a ti próprio até à morte. ”[32]

Em ambos os casos, o que não muda é o choque que a imagem provoca. Seja amando ou odiando o que vê, o sujeito ante o espelho, ou como diria Mc Luhan, ante uma auto extensão, é confrontado com um estímulo que o arranca de si. Seu eu é aquele que vê ou aquele que é visto? Tais questionamentos tornam-se estressores, e para trazer de volta o equilíbrio há o embotamento da percepção. A própria palavra grega Narciso (Nárkissos) está associada a raiz narx, que significa aquilo que fascina e entorpece[33]. Dessa forma, a imagem age como um narcótico, entorpecendo os sentidos, realizando o que Mc Luhan chama de “auto-amputação”[34].

A narcose impede o reconhecimento, o reflexo é quase uma entidade alheia a si, um terceiro com vida própria. Quando este ser pictórico se transmuta para o universo pixelado do ciberespaço e passa a interagir com outros é o momento em que se substancializam os avatares. Um avatar, como coloca Santaella, “são figuras gráficas habitantes dos mundos virtuais. […] é como uma máscara digital que se pode vestir para se identificar a uma vida no ciberespaço”.[35] Por sua natureza digital, os avatares podem ser moldados e editados para conformar-se com as exigências da “boa aparência”, e fascinados por este simulacro de si é possível que os sujeitos se tornem, como Narciso, servomecanismo da própria imagem.

Mc Luhan coloca que quando Narciso se adapta à extensão de si, torna-se um sistema fechado[36]. Não há mais abertura ao outro, quando se torna servomecanismo de sua imagem. Tudo o que se vê é, em última instância, si mesmo ou seus iguais, não há espaço para o diverso. Dessa forma, como escreve Han, não é possível ter um olhar crítico sobre aquilo que vê, já que não é possível estabelecer um distanciamento reflexivo de si[37]. O narcisista é engolido por seu próprio reflexo, e justamente por isso, não consegue conhecer-se.

O entorpecimento dos sentidos por essa narcose possui alguma similaridade com o transe hipnótico. Na hipnose clínica, grosso modo, é possível, através de um procedimento indutivo com técnicas de relaxamento e concentração, se atingir um estado de transe; no qual o hipnotizador ou terapeuta pode fazer sugestões de mudança na experiência de um paciente. Pode-se dizer que em transe o sujeito tem acesso a um universo perceptivo fora do habitual e dessa forma é possível “promover alterações substanciais na experiência subjetiva da pessoa”[38].

Irving Kirsch relata que a hipnose é uma ferramenta terapêutica que envolve imaginação e fantasia[39]. Para ele, um dos riscos que pode estar relacionado a má prática deste procedimento (como na tentativa de recuperação de memórias) é a possibilidade de perda de contato com a realidade, através da crença na veracidade de fantasias. Em estado de transe, através de sugestões, é possível provocar nos sujeitos efeitos de alucinação, dissociação, amnésia seletiva que confunde a realidade.

É claro que existem pessoas mais e menos sugestionáveis. Nem todos reagem da mesma forma. Essa resposta hipnótica também está associada a determinantes sociais, como expectativas, crenças e motivações[40]. Ou seja, dependendo de seu conjunto de crenças, seu contexto sociocultural, o procedimento de transe pode mais ou menos efetivo. Outro fator importante no transe é a conexão entre hipnotizador e hipnotizado; a hipnose pode criar um estado de harmonia entre as partes e consequentemente uma conexão intensa.

É importante destacar que em transe o sujeito em nenhum momento está completamente fora de si. O sujeito em transe é ele mesmo, mas um outro ele. “No sentido de que não é algo diferente de mim, mas não sou o eu que normalmente estou acostumado no estado de consciência habitual. ”[41]. É como se alguns inibidores sociais fossem “desligados”, o transe é “um período onde as limitações das crenças e o sistema de referência do sujeito é temporariamente alterado e este fica mais responsivo a outros padrões de associação e modelos de funcionamento…”.

Guardadas as devidas diferenças, pode-se fazer uma aproximação entre transe hipnótico e o narcísico. Em ambos os casos o sujeito tem sua experiência subjetiva afetada por imaginação e fantasia, além de assumir um estado de consciência fora do habitual; sem deixar de ser ele mesmo, torna-se outro de si. As semelhanças não findam por aí, nos dois existe uma indução para atingir um transe, a interferência das crenças e visões de mundo do sujeito no processo, e a íntima relação entre hipnotizado e hipnotizador.

O processo de indução do transe narcísico é aplicado através de um superestímulo (com uma alta intensidade sensitiva e por um longo período de exposição) que atrai toda atenção do sujeito, amortizando as outras sensações e colocando-o nesse estado alterado de consciência, no qual imaginação e fantasia tornam-se tão vívidas quanto o mundo ao seu redor. Ao invés de técnicas de relaxamento e exercícios de concentração, suas ferramentas são bombardeios sucessivo de imagens e sons hipermidiáticos, simulacros expositivos que o próprio indivíduo busca e alimenta.

A intensidade do transe narcísico também está associada as crenças da pessoa. Aqueles que creem nos engodos do espetáculo; que já se tornaram sistemas fechados, e não conseguem enxergar nada diferente de si; que já foram engolidos por seus reflexos; que estão expostos nas vitrines virtuais como objeto propaganda; correm o risco de estar mais vulneráveis a diversos tipos de sugestões, sob o domínio do hipnotizador.

Por fim, algo a se pensar é: sabemos quem são os hipnotizados, mas quem hipnotiza? Estamos constantemente nos auto hipnotizando, dentro das mídias sociais e outros ambientes do ciberespaço, porém, replicamos um procedimento que nos foi ensinado pelo nosso hipnotizador. Como na hipnose clínica, quanto mais íntima é essa relação, mais intensa e harmônica torna-se a conexão. Quem seria o nosso “ciberterapeuta”? A quem expomos nossas intimidades, opiniões, afetos e desejos? Com quem compartilhamos momentos importantes, acontecimentos marcantes, ou tempo de ócio? Quem nos acompanha, a partir dos displays, em todos os momentos da vida? E, talvez mais importante do que todas essas outras perguntas, quais as suas sugestões?

O sujeito adapta-se aos padrões de associação e sistema de referências interessantes ao hipnotizador. É uma relação desigual de poder, na qual se joga com as ideias e sensações do indivíduo, soterrando as referências do real e às planificando com imagens superficiais. Não mais existe outro, nem mais existe um eu de fato; somente o duplo espelhado em transe narcísico, a mercadoria de si, o simulacro. Se Narciso vem de narcose, o mais poderoso narcótico tem como combustível o fim da própria existência.

[1] Marry Sheley frankstein.

[2] Catarina Moura. Signo, Desenho e Desígnio: Para uma semiótica do design. Covilhã, 2011.

[3] Walter Benjamin. Pequena História da Fotografia. In: Estética e Sociologia da arte/Walter Benjamin. Belo Horizonte: Autêntica Editora,2017. p. 55.

[4] M. Dauthendey. Apud. Op. cit. p. 56.

[5] Catarina Moura. Signo, Desenho e Desígnio: Para uma semiótica do design. Covilhã, 2011. p. 145.

[6] Guy Debord. A sociedade do Espetáculo. 2.ed. — Rio de Janeiro: Contraponto,2017.

[7] Op. cit. p. 42.

[8] Op. cit. p. 40–41.

[9] Op. cit. p. 48.

[10] Op. cit. p. 54.

[11] Tradução literal: Espelho Negro. Referência à série de etc.

[12] Pierre Levy. . Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. — São Paulo: Editora 34 ltda, 1999.

[13] SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: Da cultura das mídias à cibercultura. — São Paulo: Paulus, 2003.

[14] Pierre Levy. Ibid. p.tal

[15] BAUDRILLARD, J. Simulacros e simulações. Trad. Maria João da Costa Pereira. — Lisboa: Relógio D’água, 1991.

[16] Ricardo Nascimento Fabbrini. “O que está acontecendo com as imagens? ” Arte, mídia e educação em Jean Baudrillard. In: Filosofia e Educação [rfe]. vl.8, n1. Campinas, 2016.

[17] Id. Ibid. p.64

[18] Ivone Ferreira. Incursão pelos modelos de análise da imagem publicitária. In: Media&Jornalismo. 2018

[19] Baudrillard. Apud Ricardo Nascimento Fabbrini. “O que está acontecendo com as imagens? ” Arte, mídia e educação em Jean Baudrillard. In: Filosofia e Educação [rfe]. vl.8, n1. Campinas, 2016. p.67

[20] MCLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem (Understanding media). Trad. Décio Pignatári. — São Paulo: Editora Cultrix, 1964. p.59.

[21] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

[22] Op. cit. p.tal

[23] Christoph TÜRCKE . apud. DUARTE, Rodrigo. Indústria cultural 2.0. Constelaciones — Revista de Teoría Crítica. n. 3, dez. 2011. p.111

[24] Op. cit. p.111

[25] Byung-Chul Han. Sociedade da Transparência. Petrópolis: Vozes,2017.

[26] Id. Ibid.

[27] Id. Ibid. p.34.

[28] Id. Ibid. p.33.

[29] Ovídio, Metamorfoses 3.339–510, trad. do latim de Paulo Farmhouse Alberto. In: Eco e Narciso: Leituras de um Mito. Org. Abel N. Pena. Lisboa: Edições Cotovia, Lda.,2017

[30] Ibidi. p.56.

[31] Olímpico é uma personagem de um epigrama satírico , que é comparado a Narciso, porém em sentido oposto. O texto é atribuído a Lucílio, um epigramista grego da época de Nero. Nereida Villagra. Eco e Narciso: Leituras de um Mito. Org. Abel N. Pena. Lisboa: Edições Cotovia, Lda.,2017. p.23.

[32] Antologia Palatina 11.76, trad. do grego de Nereida Villagra. In: Eco e Narciso: Leituras de um Mito. Org. Abel N. Pena. Lisboa: Edições Cotovia, Lda.,2017. p.50

[33] Nereida Villagra. Eco e Narciso: Leituras de um Mito. Org. Abel N. Pena. Lisboa: Edições Cotovia, Lda.,2017. p.10.

[34] MCLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem (Understanding media). Trad. Décio Pignatári. — São Paulo: Editora Cultrix, 1964 p.60

[35] SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: Da cultura das mídias à cibercultura. — São Paulo: Paulus, 2003. p.203.

[36] MCLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem (Understanding media). Trad. Décio Pignatári. — São Paulo: Editora Cultrix, 1964 p.59.

[37] Byung-Chul Han. Sociedade da Transparência. Petrópolis: Vozes,2017. p.

[38] OLAVO DALCANALE RIGON NETO. O transe hipnótico como possibilidade de emergência do sujeito.Dissertação de mestrado em Psicologia do Centro Universitário de Brasília — UniCEUB. Brasília, 2017 p.40

[39] Cláudia Carvalho. Entrevista com o Professor Irving Kirsch — Uma conversa acerca da hipnose clínica e experimental. Aná. Psícológica, Lisboa, v.28, n.2. abr.2010

[40] Id. Ibid.

[41] OLAVO DALCANALE RIGON NETO. Ibid. p.41

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