esta não é mais uma crônica ordinária

Leandra Diamor
Revista in-Cômoda
Published in
3 min readAug 23, 2020
Photo by Juan Encalada

Lá estava eu, pronto para mais um dia comum — apenas dentro do meu padrão de cotidiano — e como sempre, eu suava frio. Sei o que você pode estar pensando agora “se é algo rotineiro, por que é que você está nervoso?”. Pois eu lhe respondo de uma maneira que não sei se todos entenderão ou mesmo sentirão, mas é o que serve para mim: acho que nunca estou pronto para encarar a morte, mesmo que eu a encare frequentemente.

Garoava como em uma manhãzinha qualquer e eu estava a espera de minhas próximas vítimas embaixo de um ponto de ônibus vazio e mal iluminado, não conseguia evitar me encolher usando um moletom velho que para nada servia, o frio continuava a adentrar minha pele seca. O Sol ainda não tinha dado as caras, nem p’ra ‘quela manhã, nem p’ra minha vida.

Já era quase horário do expediente dos comerciantes da baixada quando eu avistei o busão velho se aproximar, a carcaça fazia sons esquisitos que pareciam aumentar cada vez que o veículo diminuía a velocidade, e aquilo fazia questão de se mover na menor velocidade possível, como se máquina conservasse vontade própria.

Vesti a máscara preta de pano, mais para o não reconhecimento do que não pegar doença, e adentrei no ônibus lotado de trabalhadores, dei uns trocados pro cobrador e fim, silêncio. Parei logo em frente a catraca e observei o meu redor, todos os bancos já estavam ocupados e havia três ou quatro pessoas em pé, foi quando o busão voltou a andar e eu tirei minha pistola do bolso do moletom dando voz de assalto.

Houveram alguns sons de espanto mas no geral ninguém gritou ou tentou pular pela janela, eu tinha a certeza de que meus olhos tremiam por causa do nervosismo mas ninguém pareceu perceber, foram todos tirando suas poucas notas de dinheiro e celulares de telas quebradas das bolsas, maior sacanagem que eu poderia fazer era roubar pobre.

O cobrador tinha as mãos tremendo quando tirou todo o dinheiro que tinha com ele e me deu, foi nessa altura que o senhor motorista deu a loucura de tentar parar a carroça e dar uma de herói, e o barulho da carcaça aumentou, e eu virei pra trás, pulei a catraca e ameacei o velho. Ficou pianinho o coitado, mas eu já estava suando tanto que a arma começava a escorregar entre meus dedos.

Agora o que acontecia já não era regular, não havia nada de trivial num sequestro, mesmo em minha rotina. Veja bem, não vou tentar me justificar, eu faço o que tenho de fazer, é meu trampo, assim como tem gente que rouba de terno e gravata, eu roubo de moletom rasgado e chinelo desgastado.

Daí em diante foi uma loucura que só, saí correndo com aquele ônibus velho e parecia que o negócio ia pifar, nessas horas de desespero entra um branco na minha cabeça e nada mais faz sentido, já não sei se eu tava fugindo ou querendo chegar em algum lugar. Todo mundo assustado lá trás, tiraram tudo as máscaras do rosto, umas senhoras desataram a chorar e eu fiquei pensando “E agora? Se uma tá doente, todo mundo tá, matei um ônibus inteiro”.

No fim eu me rendi, fiquei uns anos presos. Esta é uma crônica de um dia da minha vida. Crônica é isso, né? Texto de cotidiano urbano. Se bem que não foi um dia tão comum assim.

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