Emmanuel Brandão
Revista in-Cômoda
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3 min readDec 3, 2018

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GALO

Quatro da manhã e quarenta e dois minutos. Nem os galos acordaram ainda e meus olhos estão abertos. Aliás, arregalados. Parecem duas bilas. Olho para o lado e vejo minha esposa quase babando de tanto dormir. Fico com uma tremenda inveja. Ela dormia em um sono mais profundo do que o porteiro do meu antigo condomínio. Parecia um anjo. Essa comparação, revela meu lado romântico. Mas, confesso, também sou invejoso: pagaria alto (mesmo sem ter dinheiro nenhum) para embarcar no mesmo sonho que o dela.

Como não conseguia mais dormir, lembrei dos meus afazeres do dia. E, como na maioria das vezes, eram muitos. Mentalmente eu comecei a planejar meus compromissos: finalizar uma campanha, almoçar com um cliente, reunião interna, reunião externa, entregar meu artigo para o jornal. Perceba que esporte não passou nem pela minha cabeça. Correr? Só de um local para outro. E de carro. Cuidar da saúde é muito bonito na teoria, conciliar com a rotina é uma tarefa bem complicada. Um dia essas minhas escolhas vão me trazer danos, espero que demore tanto quanto o cantar do galo.

Vamos em frente. Pelo menos faço o que gosto durante boa parte do meu dia. Isso serve de consolo. Começo a pensar no tema da minha crônica. Olho para uma brechinha da janela do meu quarto e vejo a lua. Bem cheia. Linda. Redonda como uma bola. Já sei, vou falar sobre futebol. É um assunto que domino. Posso transformar uma declaração em crônica. Um lance em um livro. Na mesma hora, minha autocrítica não permite. Ela fala mais ou menos assim: futebol mais uma vez? Tu só sabe escrever sobre isso. Você consegue algo melhor, não consegue? Minha esposa se mexeu e, sem querer, me deu um chute. Parecia não concordar com o tema também.

O chute doeu. Canceriano e dramático do jeito que sou, pensei em chamar um médico. Aí lembrei do nosso querido presidente que ainda nem começou o seu mandato e já fez várias besteiras. Uma delas: mandar os médicos de volta para Cuba. Fiquei com vontade de mandar ele para aquele lugar. Mas todo mundo já vem detonando o Bolsonaro. Pelo menos os sensatos. Pensei que poderia ser só mais um textinho querendo ganhar like. Mais ou menos a fórmula que o presidente fez para aparecer. Achei melhor mudar de ideia para não ter nenhuma semelhança com esse indivíduo.

A última saída era falar do galo, que estava atrasado. Depois de anos e anos honrando com o seu compromisso de cantar toda manhã, parecia ter dormido além da conta. Seu relógio biológico ou quem sabe seu despertador não tocou para ele realizar seu trabalho. Suspeito que tenha ficado só com preguiça mesmo e resolveu tirar um dia sabático. O Tite fez isso durante um ano e voltou muito melhor, porque o pobrezinho do galo não pode, ora bolas? O coitadinho, todos os dias, invariavelmente amanhece cumprindo a sua obrigação, ele merece um dia de rebeldia.

Enquanto refletia sobre o galo e pensava outras hipóteses, minha esposa acordou já com o sol batendo no seu rosto, através daquela brechinha da janela que antes via a lua. Seu rosto estava lindo, uma cena digna desses filtros que usamos nas redes sociais. Ela olhou assustada para o relógio, viu que estava relativamente atrasada e levantou-se correndo para ir trabalhar. Reclamou que eu perderia o horário se continuasse ali, deitado, olhando para o tempo.

Eu virei de um lado para o outro da cama e mais uma vez lembrei-me do galo e pensei em chutar tudo para o alto. Terminei passando o dia em casa, faltei todos os compromissos que tinha e terminei mandando o texto assim mesmo para o jornal. Espero que goste. Se não gostar, me perdoe: a culpa também é do galo que ajudou com essa ideia meio maluca.

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Emmanuel Brandão
Revista in-Cômoda

Redator, publicitário, jogador e metido a escritor. Autor do livro de crônicas: Blá Blá Blá.