Gays discretos: uma etiqueta monástica

André D’Assisi
Revista in-Cômoda
Published in
4 min readSep 9, 2020
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Discrição (ou discretio, em latim) é a regra de etiqueta por excelência dos monges católicos. Quando eu fui um, aprendi que praticar essa virtude seria útil em vários aspectos da vida e quem fosse discreto tinha futuro promissor, dentro ou fora do claustro. Por isso, o monge nunca devia chamar atenção dos outros sobre si. Devia rir como se não risse, chorar como se não chorasse, ser a figura apática de vestes negras oculta pela voz uníssona do canto gregoriano.

No claustro, a prática da discrição valia especialmente para a homossexualidade. Aliás, como gay e ex-monge eu sei, pela confidência duns irmãos e pela varredura de meu gaydar noutros, que ela era quase onipresente lá dentro. Mas, por serem discretos, os monges tentavam fazer parecer que não existia. Isso era de suma importância num ambiente em que o homossexual é o antigo sodomita, ou seja, o pecador que clama a ira de Deus ao inverter a ordem da Criação para satisfazer a carne. Quem, então, quisesse falar sobre gays ou falar como gay, tinha que contornar o tabu sendo discreto, evitando o escândalo.

Seria escandaloso, por exemplo, para aquele ambiente religioso, falarmos abertamente que dois irmãos do mosteiro estavam namorando ou tendo um caso, mesmo sendo verdade. O costume pedia que usássemos uma expressão mais suave: amizade particular. Diferente do termo mundano “amizade colorida”, o monástico implica que existe verdadeiramente uma paixão envolvida entre os dois amigos. Sentimento tão forte que leva um a querer estar com o outro o tempo todo e tê-lo como apenas seu, esquecendo os outros irmãos à sua volta, e, por isso, particularizando, privatizando, uma amizade. Lembro com muita nitidez o dia que o meu prior me chamou para uma conversa espiritual (um “puxão de orelha”) onde ele disse que eu estava próximo demais do noviço irmão Homero, e deixou claro que no mosteiro não podia haver isso de amizades particulares…

Se falar que dois irmãos pareciam estar namorando já requeria certa discrição, referir-se ao sexo deles em si — o pecado contra a natureza — requeria ainda mais. O tabu era tão grande a esse respeito que não havia um modelo único de tratá-lo, uma terminologia estabelecida. Talvez os autores dos manuais de etiqueta dos monges tivessem tanta vergonha de tratar do assunto infame que preferiram não regular a abordagem e deixar que cada irmão por si criasse o termo mais discreto possível dentro de seu contexto. Desse modo, um dos monges mais velhos — e rechonchudos — do mosteiro, apelava para uma linguagem bem infantil: “Prior, aqueles irmãos só podem estar fazendo guga-guga! Eu disse guga-guga! ”. Já o noviço irmão Pablo, inflamado por inveja ou sede de justiça para denunciar os irmãos em sodomia dizia: “Prior, é tanto barulho que parece que o irmão Homero está criando cachorro no quarto. ” O abade, menos discreto por ser superior máximo do mosteiro, dizia: “Parece que os meninos estão com coisa de sexualidade, né? ”. Em seu código individual, todos se entendiam.

Semelhante aos gays do mundo externo, no mosteiro também tínhamos o divertido hábito de nos apelidarmos no feminino, mas claro que discretamente, bem longe dos ouvidos dos leigos. Às vezes bastava trocar o gênero do nome mudando a sua terminação. Mas os irmãos mais sagazes, preferiam usar nomes mais sofisticados ligados a características ou comportamentos específicos do colega apelidado. O monge mais carola e doido era a Beata Mocinha; o mais afeminado, alto que andava desfilando era a Giselle; o zelador do mosteiro, com sua cara enrugada, era a Vovó; e aquele outro que vivia se gabando das origens burguesas era chamado de Norma (a “Eu sou rica! ” da novela Beleza Pura). Porém, isso acontecia mais entre os monges mais velhos, às escondidas dos noviços. Um dia, o prior falou para mim em tom condenativo sobre essa prática: “Coisa de gay, coisa errada e mundana!”. Mal sabia a Leona que eu sabia que ela também apelidava as outras colegas.

Alguns irmãos monges, mais danadinhos, arranjavam um jeito discreto até para comentar sobre as partes pecaminosas dos outros. Meu mestre espiritual, um pouco menos sutil (por ser um superior), dizia: “Astrogildo esqueceu a cueca e tá com o tubo de desodorante balançando no hábito de novo”. Os noviços, no entanto, precisavam ser mais discretos ao tratar dessas questões por medo da punição do prior e para isso criaram a obra-prima da discrição monástica. As pessoas comuns, de fora do claustro, sabem como é universal se referir ao tamanho de pintos alheios pondo as mãos abertas com as palmas voltadas uma para a outra e deixando um espaço horizontal entre elas. Claro que no mosteiro, com fortes tabus sexuais, o gesto seria muito escandaloso e não podia ser executado. Mas alguns dos meus irmãos noviços contornaram o tabu, quebrando a regra universal de mensuração peniana através de uma sutil alteração: trocaram a posição do gesto da horizontal para vertical. Ora, dentro de um mosteiro, o gesto vertical já era tradicionalmente usado para comentarmos com devoção a medida de velas e imagens de santos e dificilmente se suspeitaria que os jovens noviços estariam criando moda para tratar doutra coisa. Mas estavam sim, e foram ensinando de um para outro, de modo que esses jovens monges, a partir daquele dia, só falavam em imagens de santos e velas. Ao menos, era o que criam os nossos superiores, não tão discretos ou espertos — por serem superiores!

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