Gilberto, um trópico inteiro
andré ribeiro
Os olhos eram como duas bolas de gude prateadas e cintilantes. Claros como água. Cativavam antes das palavras. Exprimiam algo meio lúdico, mágico, que intrigava os seus interlocutores: “Então esse é o grande compositor da vanguarda brasileira?” O que mais guardo na memória é a imagem de seus olhos desconfiados e cristalinos, às vezes, esmaecidos. Lembro de vê-los de relance numa galeria do teatro da cidade, pareciam pousar em mim, ou não…
Eu era jovem demais para saber me introduzir no círculo. Preferia manter-me à distância, alimentando conversas imaginárias na saída de uma apresentação, numa livraria, durante uma caminhada pelo calçadão da praia, num encontrão à porta do cinema, que era uma paixão sua.
Foi na saída do teatro que pensei em me aproximar. Eu, um garoto com a adolescência atravessada na garganta. Passou-se não sei quantos dias, ou semanas, e de repente fui convidado a uma festa na casa do poeta da cidade, onde Gilberto estaria. Meus pais se arranjaram para ter esse convite em mãos. Fui tremendo da cabeça aos pés, aquela tremedeira de menino ansioso, acabrunhado, que alimenta muitas expectativas difusas. Encontrei-me numa sala ampla de duas peças com seres inéditos para mim, todos no mínimo uns trinta anos mais velhos do que eu. Fui empurrado para a frente do Gilberto ― “Tua vez, vai lá!” ― que, sentado numa cadeira de balanço, decidia as conversas no vai e vem.
Quiseram saber o meu codinome, já que eu havia entrado inadvertidamente numa das reuniões do “Chulapa’s Club”; outra irreverência sua que me diverte até hoje. Não sei qual idiotice me fez dizer “Berg”. Mas fui atacado pelo maestro Roberto, que do outro canto da sala gesticulava, revirando os olhos em minha direção: « Nã, Nã, Nã… Berg sou eu! Nem pense em tomar o meu nome. » A advertência fez o Gilberto intervir: « Então, será Kurt Weill! ». Concordei com um sorriso de imensa vergonha, pois não fazia ideia quem era aquele.
Assim que cheguei em casa saí a procura deste personagem. Não havia internet na casa de meus pais no início da década de 90, de modo que tive de consultar o livro infame do Kurt Pahlen, ficando bastante melancólico com isso, pois por um instante cheguei a pensar que era ele, a reba do desconhecido, alguém para além da quinta divisão. Seria Weill seu outro sobrenome? Descobri que não, embora seu livro não mencionasse uma palavra sequer a respeito de Kurt Weill. Dias depois encontrei uma obra sua numa revista de banca: “The Seven Deadly Sins”, um balé cantado, simplesmente incrível! com libreto de Bertold Brecht, composto após sua fuga da Alemanha nazista. Dormi feliz nesse dia! Sonhei…
Naquela festa, mal o havia conhecido e derramado toda a minha angústia sobre ele, arrisquei a pergunta sobre aulas, se poderia me ensinar alguma coisa de música e composição. Seus olhos disseram sim antes de sua boca o fazer. No entanto, a confirmação vinha com algumas advertências enumeradas por ordem de importância. Primeiro, ele não dava aulas de composição exatamente, mas podia dizer como fazia suas músicas, se por acaso isso me interessasse. Segundo, não gostava de coisas complicadas. Era para ser simples, pois tinha preguiça de ler partituras complexas, com muitos bemóis e sustenidos; isto para o caso de levar as minhas músicas para ele as ver. Terceiro, não cobrava nada. Nem dinheiro, nem tarefas. Para ele era uma questão de cordialidade e convivência. Quarto, que em seu piano as teclas brancas tinham as suas cores trocadas pelas pretas, e vice-versa. E isso era fundamental saber. Concordei. Porém não resisti em perguntar sobre Darmstadt e a Neue Musik, e toda aquela complexidade sonora na década de sessenta: «Ah, isso! Foram alguns encontros num estábulo, onde se fazia alguns ensaios de orquestra. Depois as menininhas iam transar nos arbustos. Boulez veio ao nosso quarto depois, e sentou-se na minha cama, e tentou pôr a mão no ombro. Queria saber do festival… escreveu uma carta depois. Mas na verdade era uma cantada na qual não caímos (nem eu, nem o Willy, que já tinha vomitado as tripas na estação naquele dia). Ele sentiu que não jogávamos no mesmo time».
Gilberto não queria forçar ideias nos compositores. Interessava-se por eles enquanto personalidades artísticas nascentes, cujo estofo vinha a ser preenchido com a sua enorme cultura livresca e cinematográfica. Para isso não poupava esforços, intercalando história, cultura e fatos de sua vida. Nossas aulas eram como ir a uma matinê aos domingos, e sair de lá ainda mais leve, com vontade de ter mais… Certa vez, encarou-me com a folhinha impressa de uma partitura minha em suas mãos, e disse exasperado: « O quê? Clave de dó na primeira linha, e em sol sustenido lídio! Por que não clave de sol convencional em sol Maior? Poderia ser também em Mi menor. Tanta coisa bonita foi escrita com um só sustenido. », e passou a cantarolar um prelúdio de Fauré… não soube responder. Eu era muito medroso para justificar sabe-se lá quais ideias passavam por minha sensibilidade de principiante. Por isso fiquei quieto e concordei.
Foram muitas as vezes em que estive em sua casa, ele sentado na poltrona de balanço, tendo a sua volta as máscaras ritualísticas do mundo, suas lembranças de viagem. « Te assusta, é? », dizia se divertindo um pouco as minhas custas. Foi por conta desse fascínio, não sei dizer ao certo se antropológico, que o presentei num de seus aniversários com uma boneca japonesa. Ele ficou exuberante com o presente e mandou Eliana limpar a mesa do canto, criando de improviso uma espécie de minialtar.
Gilberto tinha carisma, definitivamente. Ainda que, a certa altura, não ouvisse mais as minhas perguntas, fingia que as escutava, para logo a seguir soltar narrativas longas, “cem porcento fidedignas”, dizia ele, que acabavam por me motivar de alguma forma. Era essa uma de suas habilidades: instigar os outros a ir em frente com muito pouco. E eu sempre correspondia male mal como me era possível. Por esta época compus um prelúdio pavoroso que ele fez questão de estrear durante o Festival Música Nova, sem o meu conhecimento. Fui aplaudido pelas pessoas, nem sei bem o porquê, enquanto Gilberto, ali de pé no Teatro Brás Cubas aplaudia primeiro, olhando-me, e em seguida ao “nosso pianista” Antônio Eduardo. A surpresa foi redobrada pelo presente que ganhei a seguir de meu pai, por sugestão do Gilberto, um metrônomo! Tenho-o até hoje em cima do piano como um totem.
Como dizia, aquela festa avançava na madrugada com auxílio de café e biscoitos de gengibre para nos manter acordados, papeando, até pelos menos as quatro da manhã, quando Gilberto, numa longa pausa introspectiva, num rompante trêmulo de um ancião, arrancou-se da poltrona voltando seus olhos para mim, e disse para que todos o ouvissem: « Olha, não seja assim, tão à sério! Eu nunca o fui. Subia a serra para as aulas da universidade por uma ninharia. Veja, eu sou da praia. », e tornou a cair na cadeira. Essa última frase foi com certo vigor que a disse, acrescentando com os olhos já voltados ao poeta: « seja como o nosso Karl May aqui que dá aulas de turismo sem ter saído do lugar. ». Não me recordo o que eu possa ter dito para que ele me desse esse conselho? Porém, lembro de o ter recebido como um enigma. Afinal, quem era eu? Não me levava a sério mesmo! Não havia dúvidas quanto a isso. Aliás, eu duvidava seriamente de minhas possibilidades, pelo que vivia inseguro.
Devia ser umas três horas da manhã quando desatou a falar neste assunto. Seu aspecto mudara gradativamente. Contou uma longa história sobre a ditadura, e sobre como havia feito uma viagem de navio à Europa nos tempos de militância: « Sabe, é diferente chegar a uma terra devagar, lentamente, pianissíssimo! No início é uma linhazinha lá no horizonte, e não se vê nada. Passa um dia inteiro, as vezes dois, e de repente os olhos se abrem. Despertam! E o continente vai lentamente se aproximando da embarcação, e nós lá dentro, na murada, aguardando… O sabor que isso tem é outro. Nunca mais tive esse prazer… nunca mais! », disse se entristecendo, como quem acorda bruscamente, e prosseguiu: « Por isso não me dou com aviões de modo algum! Veja. Tomo um comprimidinho — como é mesmo o nome, hein? — e entro flutuando, assim, com um foxtrote na cabeça, lá, lá, lá yá… ». E então ele se pôs a cantarolar uma canção desconhecida: « Tommy Dorsey orquestrou essa. Coisa fina! Toca na alma! » Enquanto ele voltava a se inspirar, entretendo os convidados, ao meu lado o fotógrafo da turma nos contou uma história aterradora, em que ele e mais um colega pegaram no sono num trem saído de Bonn, por essa mesma época, ao menos entendi que sim, e acordaram em Berlim, tendo passados desapercebidos da guarda da fronteira. Foi então que viram alguns passageiros serem levados para fora aos empurrões e pontapés, até o fim da linha, de onde se ouviu um estampido seco. Gilberto, o interrompeu a esta altura para dizer que ele estava na década errada. Ele falava de Tommy Dorsey e a década de trinta. A cortina de ferro não tinha nada a ver com isso, mas aproveitou o gancho para resumir tudo em poucas palavras: « Hoje, se estivéssemos na ditadura, essa reunião nossa aqui seria altamente suspeita, estaríamos todos presos, ou pior, mortos… ». Entramos no torpor da alta madrugada. Silêncio geral.
Espalhando pela sala, a uma hora do sol nascer: no banquinho do piano próximo ao corredor, deitado no sofá, na poltrona francesa, no chão sobre o tapete peruano, fomos nos esparramando aqui e ali. Deitei-me no sofá, os olhos sonolentos, o som das ondas me embalando, com todas aquelas máscaras a volta, as cortinas esvoaçantes, como as de uma nau feita ao mar, a voz do poeta distante, alguém requentava o café, o duplo toque da partida, as areias dos mares do sul… eu afundava lentamente…
Acordei suado até os tornozelos. Havia dormido metade fora, metade dentro do colchão da bicama em meu quarto, riscado pelo sol que atravessava as persianas. Eram dez horas quando a minha mãe entrou com uma muda de roupa e me viu naquele estado: « Você dormiu assim? ». Debaixo do lençol, a cabeça latejando, enquanto minha mãe insistia « Hein!? ». Respondi que não fazia a menor ideia. Meus ouvidos zuniam. Fui levantar e me dei conta que ainda vestia roupa da noite anterior. « Por que você tem areia nos pés? Foi à praia? ». Olhei para os meus pés, sem resposta para aquilo, embora as cortinas me parecessem brancas demais…
De pé pensava em como responder aquele e-mail. Se ela tivesse perguntado como conheci Gilberto seria tão mais fácil responder... Uma preguiça monstruosa me invadiu. No entanto, pelo sim ou pelo não saber como responder a lista de perguntas de pesquisa, optei por esclarecer a minha hesitação. E assim fiz o melhor que pude.
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Em resposta à Mar del Vale, em 30 de dezembro de 2017.
“Olá Mar, confesso que fiquei surpreso com seu e-mail. Você me pergunta quem era Gilberto? O que posso te dizer? Enquanto eu lia seu e-mail milhares de coisas me voltavam à memória. Não sei bem por onde começar… Quando se conhece alguém de perto as cronologias se apagam. Percebe? É muito difícil colocar a vida numa sequência coerente e recontá-la do princípio. Digo tudo isso porque sei que posso apenas te responder algumas generalidades de pouco efeito para a sua pesquisa, sem peso algum acerca deste nome que você estuda, e pretende produzir uma biografia. Por isso tomo a liberdade de sublinhar algumas de suas questões abaixo, e respondê-las de modo muito sucinto e breve. Deixo em aberto a possibilidade de uma conversa informal, em dia que lhe for mais conveniente. No mais seguem as respostas.”
“Atenciosamente”
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Em 30 de dezembro de 2017, 5:00 PM, “Mar del Vale” <maryslaton@gmail.com> escreveu:
Olá, meu nome é Mar del Vale. Sempre fui admiradora da obra do Gilberto Mendes, e estou organizando uma biografia a respeito dessa grande figura da música de nosso tempo. Passados dois anos de sua morte, tomo a liberdade aqui de fazer algumas perguntas sobre sua vida e obra. Se não for incomodo, preparei um questionário de dez perguntas. As respostas serão cruzadas com as de outras personalidades que se dedicaram a divulgar suas obras, e que o conheceram em vida, podendo assim contribuir para revelar os traços marcantes de sua personalidade única. Caso o senhor tenha comentários a fazer que não estejam diretamente relacionados às perguntas, mas, outrossim, vá elucidar partes de sua personalidade artística, peço a gentileza de fazê-lo no campo disposto no formulário, ao final das questões, se possível, não ultrapassando 600 caracteres, contando os espaços (equivalente a meia lauda), para melhor avaliação.
Grata!
Mar del Vale.