Guerra Crônica-Diretoria Colegiada

Iuri Santos e Tavares
Revista in-Cômoda
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2 min readFeb 26, 2023

Sem pretensão nenhuma, repousei, aleatória e acidentalmente, um livro de Clarice Lispector sob uma pilha de papéis do trabalho. Admito que ela tem sido minha companheira fiel entre turno, um escape para a felicidade clandestina, que rápida e fugaz, retorna ao esconderijo da bolsa de couro. Poetas são as bruxas da modernidade, sendo queimados na estaca da ignorância pelas chamas da desvalorização, alimentadas pelo combustível da falsa curiosidade. Por isso, corro em escondê-la ao badalar religioso do fim do almoço.

Voltando ao ocorrido, ali estava ela de lábios pintados, traços definidos pelos infinitos questionamentos somados a maturidade da compreensão do que é a mulher (especialmente aquelas que ousadamente tecem palavras no tecido de papel) na nossa sociedade. Estava ali o encontro mais sólido pensamento literário contra a concretude de uma meia dúzia de três ou quatro resoluções sanitárias.

Apesar de fisicamente estarem se tocando, elas jamais conversariam. Uma RDC não tem o arcabouço necessário para entender Lispector, falta-lhe o tato e a compreensão do subversivo que az no canto de cada intento e alma. A contrapasso talvez Lispector se sentisse a criança oprimida pelo que a vida adulta demanda logo no florescer da infância. Duas paredes de papel sólidas, cada qual ao seu modo, degladiaram, sem trocar uma palavra, ironicamente, sendo os dois feitos dela.

Encerrei essa guerra fria com um rápido movimento, a tensão quase nuclear estava começando a ser sentida no ar, apesar da falta de sensibilidade das pessoas ao redor em percebê-la. Fui o único espectador de uma guerra de dois minutos.

O duelo entre a fria lei e a fluida crônica poética não resultou em vencedores, raros são os resultados proveitosos do conflito de dois estilos literários. Certamente temos que tomar cuidado onde colocamos nossos livros.

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Iuri Santos e Tavares
Revista in-Cômoda

Cristão, farmacêutico, grunge e poeta (necessariamente nessa ordem).