Homo Technos

Lucas Arcelino
Revista in-Cômoda
Published in
5 min readJun 3, 2020
Murakami Arhat Robot, obra do artista Takashi Murakami, 2015. Foto retirada do google imagens

Não sou nenhum arqueólogo, mas me arrisco a dizer que a história da humanidade é a história de suas ferramentas. Pode-se partir de distintos elementos culturais para se remontar um período histórico, mas poucas coisas resumem tanto o espírito de uma época quanto suas tecnologias.

As ferramentas que criamos é o que media nossas relações com a natureza e com as pessoas. A tecnologia está conosco de maneira simbiótica e integrada, de forma que apreendemos o mundo nos termos daquilo que ela revela.

Isso pode ficar muito mais perceptível através de um exemplo. Pois bem, recentemente eu estava lendo um conto de HP Lovecraft chamado “O navio branco”, no qual um faroleiro ingressa numa viagem sobrenatural a bordo de uma embarcação mística e no final da jornada chega ao ponto crítico onde “os oceanos do mundo deságuam em um vazio abissal. ”

Para além das questões místicas, o conto nos remete a algo que já se encontrou no imaginário das sociedades humanas por muito tempo. A ideia de que há um abismo no final dos oceanos era amplamente difundida, pelas autoridades e pelo senso comum da idade média. Era essa a ideia que se tinha de mar, e para todos os efeitos, era essa a realidade vigente. Com o desenvolvimento de novas tecnologias navais tornou-se possível realizar expedições cada vez mais ousadas, até o momento em que parecia cômico acreditar no que antes era consenso. Ou seja, a própria percepção humana a respeito do mar mudou completamente; não consta mais no imaginário coletivo “o grande abismo no qual os oceanos desaguam”, pois, a tecnologia nos revelou este mistério.

Algumas mudanças traçam linhas que quando ultrapassadas não são mais possíveis de retroceder (ao menos não sem deixar de lado tudo aquilo que fundamentou a mudança). Utilizando o exemplo anterior: não podemos mais compreender o mar da mesma maneira que ele era entendido no século XIV, a não ser que ignoremos tudo aquilo que foi aprendido acerca dele durante os últimos sete séculos.

Existem marcos tão violentamente transformadores que são chamados de revoluções. As revoluções industriais, por exemplo, transformaram completamente os modos de produção da humanidade, fazendo com que a sociedade se reestruturasse em função das novas condições de trabalho e relações de poder. A profundidade destas mudanças afeta todas as instituições e visões de mundo, constituindo um novo paradigma global intermediado por máquinas e burocracia.

A tecnologia nos permite fazer, conhecer, e explorar coisas antes impensáveis. Em outras palavras ela torna real o que não passava de imaginação (Não quero soar como um determinista tecnológico, mas isso é assunto para outro texto, por aqui basta dizer que a encaro como condicionante, que atrelada a uma rede complexa de outros condicionantes, produz a vida social). Explorando esta potencialidade creio que avançamos mais um marco irreversível, que destruiu tantos paradigmas e abalou tantas certezas que fez jus ao nome de Revolução, dessa vez, digital.

Sempre estivemos o tempo todo imersos na tecnologia, mas nunca essa tecnologia interferiu tanto na nossa percepção de realidade. Mcluhan, o grande pensador canadense da comunicação, já propunha que as tecnologias são extensões do humano. A roda seria uma extensão dos pés, a câmera fotográfica uma extensão dos olhos, o rádio uma extensão da voz. Contudo, hoje estamos tencionando os limites do que pode ser estendido tecnologicamente, ao ponto de o corpo inteiro ser integrado no mundo digital.

Pensando nessa relação corpo/máquina pode-se perceber, como salienta Lucia Santaella, diferentes níveis de imersão, que vão desde uma conexão mais superficial através de uma interface, na qual o usuário viaja nos espaços virtuais afastado de seu corpo físico no fluxo de informações; até conexões mais profundas, como as realizadas através de avatares e VR (virtual reality).

Foto retirada do google imagens

Um avatar é uma figura que habita os mundos virtuais, uma espécie de máscara virtual que possui uma identidade criada pelo usuário — o efeito psíquico dessa sobreposição corporal é tão intenso que, para alguns indivíduos, o avatar torna-se sua identidade mais valiosa. Já o VR é a tecnologia que mais aproxima o corpo físico de uma experiência sensorial dentro de um ambiente simulado, é a captura refinada dos sentidos, o “fundo do poço” da imersão.

Independentemente do nível de imersão, a tecnologia hoje não apenas faz da imaginação realidade, realizando feitos e alterando nossa forma de perceber o mundo, como também borra os próprios limites do real, proporcionando experiências simuladas, estímulos sensoriais e psíquicos, e espaços virtualmente preenchidos que passam a competir com o mundo real. Tal competição torna-se um estressor para o Sistema Nervoso Central, e não é à toa que doenças como ansiedade, depressão e síndrome de Burnout vem tornando-se cada vez mais prevalentes na sociedade.

Mc Luhan propunha que ao sermos expostos a uma pressão que acelera nosso ritmo de processamento e aumenta a carga de informações, respondemos exteriorizando essa função através de prolongamentos do nosso corpo via tecnologia. No entanto, a própria tecnologia criada provoca uma nova irritação, um novo estímulo, que requer de nós um entorpecimento das outras sensações para equilibrar as novas relações.

Ao imergir nos espaços virtuais, invariavelmente, estamos lidando com volumes incalculáveis de informações, para suportar essa dose cavalar de estímulos, entramos num estado de narcose que amortiza nossa percepção do derredor. Esse deslocamento da percepção nos coloca em outro plano, que opera em outras instâncias de temporalidade e espacialidade. Um território limítrofe entre seu “aqui e agora” físico entorpecido, em sincronia com uma existência etérea em forma de bits, que vaga completamente imerso em mares de data.

Essa forma de existência, para mim, é o Homo Technos. O homem que foi engolido pela técnica e passa a viver dentro dela. É ainda, vale ressaltar, um protótipo. Nessa concepção, o humano tenta desgarrar-se a todo custo de sua existência biológica, corporal, e por isso mesmo, mortal; o que de fato ainda não foi possível. Mas a pulsão de eternidade encontra no virtual um potencial de realização. Por enquanto, estamos em beta test, aguardem a próxima atualização.

Referências:
Lucia Santaella, Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura, 2003.
Marshall McLuhan, Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem (Understanding Media), 1964.

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