Humanamente incapaz, monstruosamente forte.

Senhorita M.
Revista in-Cômoda
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3 min readMay 18, 2021
Richard Russell’s Anatomical Collage Work, 20th C

Senhora C,

Escrevo-lhe, porque o tempo às vezes parece maldito. Raramente eu consigo tocá-lo, e, de maneira ordinária, ele passa através das lentes de meus olhos.

Ele pode parecer estático quando me sento em um banco na varanda observando o sol secar as roupas do varal enquanto meus olhos aos poucos vão ficando cansados, ou quando ouço a minha música favorita e sinto como se ele, o tempo, estivesse me acalentando e com a sua energia genuína apaziguando alguns delírios.

O tempo também pode parecer fugaz quando meu corpo está completamente imerso no passado, imerso nas lembranças, imerso em sentimentos melancólicos e, quando isso acontece, a simplicidade do cotidiano se torna transtornada, insegura e perdida.

O dia está ensolarado, em contraposição ao meu humor. Ultimamente, a comida parece estar com um gosto estranho, sinto uma leve dificuldade de me alimentar corretamente. Meu corpo não está como antes, não consigo manter 30 minutos de foco e pareço estar constantemente cansada. Queria que toda essa situação terminasse, pois é muito difícil fazer parte de um momento histórico, sobretudo quando tem-se plena consciência das consequências catastróficas que iremos passar, principalmente para nós.

As minhas redes sociais estão há mais de um ano desativadas, não tenho fígado para tratar a crise sanitária e política como algo inexistente, o novo normal não existe para mim. As minhas maiores decepções esse ano estão vindo de pessoas que amo e amei, sendo inconsequentes de forma consciente, prejudicando não só a própria vida, como também o bem-estar coletivo. A doença não é algo meramente individual e ficar todos os dias em casa, saindo apenas para trabalhar, é algo extremamente exaustivo. Boa parte dos meus sentimentos estão sendo suprimidos por uma rotina que apenas eu parece viver.

Sinto cansaço existencial e a mediocridade humana é algo absurdamente assustadora para mim. Passei as últimas horas ouvindo defesas de situações insanas e egoístas, é como se pessoas comuns atualmente fossem a personificação do mal, dentro da perspectiva cristã, por isso, a cada dia que passa, a ideia de Deus fica mais distante, por que ele seria conivente com tudo isso, sempre me pergunto, talvez ele seja uma invenção humana cooptada pelo capital, e passo poucos minutos criando hipóteses blasfêmicas, mas paro rapidamente com medo de ser punida de forma grave.

Os meus pensamentos parecem uma grande carta depreciativa a mim mesma. Pareço esperar a catástrofe de maneira pacífica, sem resistência, sentada na beira da estrada olhando os carros passarem, sem nenhuma lágrima. Os meus sentimentos são contraditórios, sinto ansiedade por querer viver, ser como eu era antes, mas uma nova versão de mim; ser pacífica, mas estar farta de sentir tanto ódio. Contradições. Os pequenos momentos não tem mais graça, limpar a casa, dançar, jogar conversa fora, nada faz sentido.

Esses dias eu estava lembrando de fatos de anos atrás e fiz um paralelo se meu corpo atual, cansado e com alguns quilos a mais, iria aguentar minha rotina passada, não obtive respostas concretas, porém fiquei impressionada com aquilo que fazia, estudar, trabalhar, estágio, academia. Hoje talvez eu fosse humanamente incapaz de fazer todas essas tarefas, porém são apenas suposições e delas estou farta. A cada dia que passa, percebendo o quanto consigo lidar com a sobrecarga emocional e física, mesmo com todas as dificuldades, descubro-me uma pessoa monstruosamente forte, porque é a única coisa que me resta, pois…

A vida é um poema sujo, minha linda. (Nill)

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Senhorita M.
Revista in-Cômoda

Histórias em que eu me encontro, eu conto | Aspirante a escritora | Contista.