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Infelizes pelo resto do tempo

Fabio Pires
Revista in-Cômoda
Published in
3 min readMar 22, 2022

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Há muito tempo que não se lembrava dela.
Nem mesmo uma mórbida curiosidade tinha.
Teria finalmente esquecido?
Talvez.
Pelo menos até aquele momento.
Memórias quase extintas apareceram vindas do nada.
Realmente do nada e sem um motivo qualquer ou mesmo uma pista.

Típico de dias monótonos, corriqueiros ou de dias frios.
Dias assim (absolutamente irrelevantes) levam a pensamentos desnecessários e num destes momentos de cultivo ao ócio e ao silêncio contínuo surgiam lembranças deste quilate.
Até gostava de se ver absorto por alguns pensamentos assim.
Já por este em especial se sentia desconfortável.

E esse sentimento continuava o mesmo, apesar de ter mudado muito como pessoa e hoje entender o que houve.
Eram tempos que relutantemente se recusava a aceitar qualquer mudança. Mudanças que ela pediu silenciosamente por anos.
E que ele negara fervorosamente, apesar de empregar estas mesmas mudanças anos após.

Não queria se lembrar.
Nem teria uma razão.
Ponto final. E bastava.

Mas mesmo assim não sabia o que o (ainda) deixava desconfortável.
Por muitos anos não soube dizer se desejava que ela estivesse mal ou se a
queria bem, como ele mesmo se sentia desde então.
Não mais.
Não a desejaria o mal.
Para quê?

Lembrava-se dela, mas sem vestígio algum de saudosismo ou qualquer traço dos seus habituais exageros.
Cazuza era um mero meninote aos seus pés.
Naquele momento já não enxergava nada além de uma imagem turva do seu rosto como era naqueles tempos.

Uma visão inexata surgia mostrando seus olhos de eterna ressaca machadiana, que exaltava toda a insatisfação que sentia, sem externar e que provavelmente escondia também se si mesma.
Ainda assim conseguia se lembrar do seu cheiro, próprio de quem não usava perfume por causa da rinite.
Claro e nítido este passeava livremente pelo seu nariz.

Lembrava-se do sorriso falso e frágil, mas que em muitos momentos bastava.
Lembrou do cabelo encaracolado e solto ao vento sinalizando a liberdade que ela exigia.
Lembrou-se das vitórias em conjunto e das derrotas solitárias.
Porém já não se lembrava da última vez que a viu e muito menos do que falou naquele momento.

Lembrou sim!
Pegou o cheque com sua parte na venda da casa e dos móveis que sobraram, deu as costas e partiu.
Sem dizer palavra alguma.
Parecia que este momento nem tinha acontecido.
O curioso é que se recordava da primeira vez que se viram e de como tudo aconteceu.

De detalhes que ele nem sabia que repousavam na memória: dos copos vazios de Martini, do desânimo em socializar e do entendimento rápido que descobriram guiados apenas pelo olhar.
Ou pelos raspões intencionais dos seus seios em seu braço sinalizando o que ela de fato queria.

Se lembrou das verdades que esconderam e das mentiras que contaram, das tardes preguiçosas de domingo abraçados na rede e dos silêncios que falavam mais do que estavam preparados a ouvir.
Se lembrou de algumas coisas irrelevantes e simplórias.

E de como foram felizes.
Por um tempo.
E depois infelizes.
Pelo resto do tempo.

O tempo ainda era o mesmo que ele via voando e ela o enxergava como uma âncora.
Nas profundezas do seu pensamento se lembrou da primeira vez que se sentiu abandonado por ela, mesmo antes de sua partida.
E nisso se lembrou de quando a abandonou mesmo sem lhe dizer ou mesmo partir.
Quites, não?

Mas ainda não entendia a razão para se lembrar dela.
Só se lembrava de como foram felizes.
Por um tempo.
E depois infelizes.
Pelo resto do tempo.

Texto requentado de 2014 ou 2015.

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Fabio Pires
Revista in-Cômoda

Escritor com dois livros lançados, Editor, Redator, Tradutor e escreve na Impérios Sagrados, no Projeto C.O.V.A e na Revista In-Cômoda.