I’ve got life. Por enquanto.
Um respirar profundo no fim de tarde. As pessoas entram no ônibus. Alguns apressados e outros a passos lentos, como uma senhora de aparência cansada. A senhora tinha parte dos cabelos grisalhos, uma pele escura e um sorriso amarelado coberto por uma máscara de pano. De tênis, camiseta estampada e bermuda jeans, ela segura algumas bolsas enquanto faz perguntas frívolas ao motorista, deixando os próximos da fila inquietos.
— Como tá a família? Tá todo mundo bem? — diz com uma voz rouca e um ar preocupado, o qual desaperece quando seus olhos — que parecem ser duas pedras negras brilhantes — ficam menores ao sorrir no instante que entrega o dinheiro da passagem. Ela dá alguns passos e se senta no banco da frente.
As pessoas, ao entrarem, se apressam em busca de um local para se sentar. Dezessete e trinta e seis. Dezessete e quarenta e dois não havia mais espaço no transporte. Todos imprensados. Tosses, resmungos, conversas e músicas inaudíveis eram perceptíveis no banco perto da janela no meio do ônibus onde estava Helena.
Helena era uma poeta que teve seus sonhos de escrita reprimidos pela maior idade. Ela observa o sol se pondo do lado de fora da janela semiaberta e o fluxo do tráfego que fica a cada minuto mais intenso. O Holocausto silêncioso do século XXI, seria um bom tema de livro pra escrever se eu sobreviver a mais uma câmara de gás.
Vinte e três anos. Cabelos negros e crespos, presos em um coque no topo da cabeça, brincos de madeira que remetiam a simplicidade do quintal de sua avó. Pele do rosto com algumas manchas de espinhas, máscara cobrindo o seu nariz e seus lábios . Uniformizada, com uma ecobag sobre o colo. Quando isso tudo vai acabar? Eu não aguento mais. Meu Deus, todo dia a mesma coisa. Ônibus lotado, mais uma notícia trágica no jornal, 3 mil mortos e mais uma discussão idiota no twitter. Que desesperador. Algumas lágrimas escorrem sobre o seu rosto. É só mais uma noite, Helena, força, a gente vai sobreviver.
A senhora de cabelos grisalhos, Aparecida, acordava às quatro todos os dias. Antes das galinhas, ela já estava de pé. Fazia o café e de banho tomado olhava os seus filhos e depois ia direto para o ponto de ônibus para mais um dia de trabalho. Aparecida trabalhava em uma casa no bairro nobre da cidade, pegava 2 conduções para chegar no local. Era uma mulher de desejos antigos. Será que o Gabriel já chegou em casa? A rua tá tão perigosa. Que Nossa Senhora possa proteger a gente disso tudo! Eu não tenho mais idade pra isso. Anos trabalhando na casa dos outros pra ter meu pedido de aposentadoria negado, agora vou ter que morrer trabalhando. Tomara que a Juliana tenha feito a janta.
Cinquenta e sete anos. Apelidada como Dona Cida, aos dez, inspirada pelo Programa do Chacrinha, tinha como aspiração ser uma dançarina e aos doze começou a trabalhar fora, às vezes fugia com a sua irmã Dulce para dançar nos bailes daquele tempo. Era tão bom dançar naquela época. Como é mesmo o nome daquela música do Tim Maia que a Dulce gostava de cantar? Ah! Se o mundo inteiro me pudesse ouvir, tenho muito pra contar dizer que aprendi. E na vida a gente tem que entender que um nasce pra sofrer enquanto o outro ri. Dulce…
De pé, imprensado no fundo do ônibus. Dezessete anos. Emprego de meio período na padaria a duas horas da sua casa. Às dezenove horas, Fernando precisa organizar os afazeres da escola, que agora funciona de maneira remota. Cabelos raspados, máscara cobrindo parte do rosto, olhos marrons intensos e vestido com uma blusa de dois números acima do seu.
Com fones de ouvidos cobrindo toda a sua orelha, Kendrick Lamar tocava no último volume tentando abafar as conversas externas e aliviar o desconforto de Fernando por estar com o braço levantado e uma mochila nas costas há alguns minutos. A Tássia deve tá pistola comigo. Como eu fui esquecer o aniversário dela ontem, justo o aniversário, mano. Ótimo namorado, viu. Como diz o Kendrick Lamar, Loving you is complicated [Amar você é complicado]. Na verdade me amar deve ser complicado, né. Eu nem sei o que que eu vou fazer pra ela me perdoar. Tenho que passar na casa da tia Ana pra pegar as roupas da minha mãe amanhã, não posso esquecer. Que fome.
Fernando fazia cursinho comunitário oferecido no seu bairro, ele queria passar no vestibular de engenharia. Sem irmãos, morava junto com a mãe e precisava trabalhar meio período para complementar a renda da casa.Hoje tenho que fazer os exercícios de física e nesse sábado a redação. Eu só queria dormir um pouquinho. Que fase! Espero tá melhor daqui uns anos, pegar ônibus é chato pra caramba. Que demora pra chegar em casa. Eu queria comer peixe frito com a minha mãe. Apaixonado pela vida e por Tássia, Fernando, mesmo com pouca idade tinha sonhos impossíves de colocá-los em uma caixa.
Eu tenho vida, por enquanto. Talvez eu não sobreviva até semana que vem. Meus sonhos frustados, esmagados pela versão moderna da câmara de gás. Silenciosa…
— Pera, motorista! Eu vou parar aqui — diz Helena se levantando de forma acelerada para não perder o ponto.