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Morte em vida

A vegetação rasteira da caatinga com algumas poucas árvores espinhentas e de troncos retorcidos acompanham piamente mais um período de seca.

Fabio Pires
Published in
5 min readNov 7, 2023

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Já nem lembram da última chuva que caiu e de quando ouviram o canto da seriema, afinal só percebemos o valor da água depois que a fonte seca.
Folhas secas, poços secos e almas secas.

A tristeza e a frustração sempre os acompanharam e como resultado não sabiam como agir ou mesmo viver de outra maneira.
De fato, não conheciam outra vida e esse estado permanente os levava a exaustão mesmo que nunca tenham se dado conta.

“A vida é assim mesmo”.

Se resignavam enquanto se enganavam, como se fosse uma espécie de morte em vida.

Todo dia era o mesmo sempre.
Todo dia era o mesmo sol de queimar o chapéu de couro.
Todo dia era o mesmo nada.

Se sentiam pesados e densos com semblantes sempre carregados pela tensão, pela dúvida e pela fome.
Abençoados por um deus que parecia ter esquecido deles por ali.
Se sentiam com um piano nas costas, mesmo sem saber executar uma única nota e sem mesmo ter alguma música em suas vidas.
No máximo uma sinfonia muda.

Eram pessoas sem expressão ou mesmo vestígio de algum amanhã.
Futuro?
Certamente é alguma palavra que nunca lhes foi explicado o significado.
Viviam um dia por vez.
Um sol por vez.
Sem saber do que se tratava esse tal de amanhã.

Para ela.

O jardim florido e ornamentado que um dia imaginara como palco para a vida colorida, que fantasiou quando criança, agora se via em escombros de uma guerra há muito já perdida e que para ela nunca findava.
Todo dia uma batalha nova e isso a cansava já que nunca enxergara um fim para isso.

Já havia pensado algumas vezes no chumbinho como saída, mesmo que faltasse coragem e que não contasse isso a ninguém.
Achava que deus não a puniria por isso, porque se não ouvia suas preces também não ouviria seus lamentos.

O choro estridente dos pequenos pedindo água e comida era o que acabava com ela.
A dor de estômago causada pela falta de uso já não a atormentava mais, mas o choro dos filhos acabava com o restante de suas forças, da sua fé e destroçava suas esperanças.

Já ele.

Via e vivia sua existência como uma infindável via crucis daquelas que a igreja mostra nos autos de Natal em que a cruz era o peso por se sentir um completo fracasso.
Sendo que o flagelo de sobreviver era o caminho que tinha que seguir. Nunca soubera o que viera primeiro, a dúvida ou a certeza.

O pouco que externava em balbucios ou eram ignorados pelos capatazes da fazenda ou sequer eram ouvidos pelo volume quase inaudível de sua voz.
E nessa sequência do que um dia alguém apelidou de vida ele seguia ou era conduzido, mesmo sem se dar conta, para o mesmo fim destinado ao rebanho do dono da fazenda.

Felicidade, para ele, era raspa de biscoito de maisena molhado no café sem açúcar.

Que ele ansiava todo final de tarde com a textura e a doçura do biscoito se desmanchando no contato com sua língua áspera e seca.
Aquele era seu orgasmo diário.
Gostava da ansiedade que sentia pelo biscoito e pelo café ralo distribuído pelos capatazes no final do serviço.
Essa ansiedade o ajudava a ignorar as inúmeras capinadas que dava no terreno tão árido quanto seu céu da boca e sequer percebia que seus braços já nem sentiam mais as dores de um dia inteiro na roça da fazenda.

Fazenda esta tão grande que se perdia de vista, pra todo lado eram terras pertencentes ao “Coroné”.
Ele que se fazia passar como dono do mundo.
Se não do mundo, mas de todas as terras de Poço Redondo, o que já era o mundo todo que eles conheciam.
Muito mais do que podia existir e muito além do que sua vista turva pela fome podia alcançar.

Não sabiam o que existia por trás do horizonte e imaginavam que provavelmente ainda seriam terras pertencentes a ele.
Quando criança cruzava o chão árido o mais longe possível para testemunhar o que existia depois daquela linha.
Mas ela, a linha, sempre se mantinha distante.
Sempre se afastava e os mantinham, ele e seus seis irmãos, longe.
Achava seu vilarejo tão distante de tudo que nem o horizonte queria se aproximar deles.

O sol era quem nunca os abandonava.

Sempre lá. Forte e perturbadoramente insistente.
Sempre a matar o pouco dos cabritos que resistiam, a rarear a água que nunca chegava em quantidade suficiente, a criar mais dificuldade em manter a sua pequena horta e a manter seu tom de pele ressecada.

Os filhos ainda eram muito pequeninos para ajudarem na roça, mas em breve seriam mais dois a aumentar a estatística de crianças que não ingressariam na escola.
Assim como ela.
Assim como ele.
Assim como todos, menos os filhos do Coroné.

Já adulto tentava entender por que sempre apareciam uns engravatados prometendo água e comida a cada eleição sendo que eles nunca cumpriam.
Ele nunca votava mesmo, nem no candidato que o Coroné mandava.
Ia no posto, marcava o dedo no lugar da assinatura e fingia votar no engravatado que falava bonito e que só veria de novo em quatro anos.
Assim como fingia estar vivo.

Ela, por sua vez, tentava imaginar como seria sua vida se tivesse subido naquele ônibus enferrujado que uma vez por semana sacolejando carregava boa parte dos seus conhecidos para o sul ou para qualquer lugar longe dali.
Longe do sol, da fome e do pouco que já se acostumara.

Mas com tanta fome sequer conseguia imaginar algo sobre sua sorte e o pensamento turvo se misturava com a necessidade de ingerir algo.
Nem que fosse uma lasca fina de esperança.
Nem que fosse um naco ralo de vida.

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Fabio Pires
Revista in-Cômoda

Escritor com dois livros lançados, Editor, Redator, Tradutor e escreve na Impérios Sagrados, no Projeto C.O.V.A e na Revista In-Cômoda.