Mortos-vivos

Pedro Dantas
Revista in-Cômoda
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4 min readNov 17, 2017
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Fim de tarde, happy hour. O bar está lotado. O zumbido das conversas, risadas e lamentos — somados ao tilintar dos copos e talheres — é constante e monótono.

Dois homens estão sentados no balcão. Eles acabaram de se conhecer. Marcelo (o da esquerda) tagarela com voz trôpega enquanto toma seu chope e belisca a porção de amendoins que fora deixada à sua frente. Valter (o da direita) beberica uma long neck e tenta inutilmente assistir ao jogo que está passando nas televisões do estabelecimento.

M: Quer dizer, então, que você é médico?

V: Sim.

M: Médico de quê?

V: Intensivista.

M: E o que merda é isso?

V: Intensivista é o médico que trabalha em UTI.

M: Isso é uma especialidade?

V: É.

M: Pensei que as pessoas iam pra UTI só para morrer.

V: Não.

M: Legal.

Silêncio, apenas o pano de fundo da boemia — aquele burburinho indistinto que nem é mais considerado ruído. Valter pensa que Marcelo finalmente vai deixá-lo em paz. Escora-se no banco e dá um gole na cerveja. Cinco segundos depois:

M: Tenho duas perguntas.

V: Hm.

M: Como você é uteísta, acho que pode me responder.

V: Hm.

M: A primeira tem a ver com doação de órgãos. Eu estava conversando com meus amigos e este assunto veio à tona. Falei que não entendia o tamanho das filas de transplante, é tanta gente morrendo por aí, podiam catar os órgãos desses mendigos que morrem de podre pelas ruas de São Paulo e pronto, sem mais lamentos. Daí eles riram da minha cara e falaram que os órgãos ainda precisam estar funcionando no momento da doação.

V: É verdade.

M: Quer dizer que vocês matam aqueles que já estão com um pé e meio na cova e arrancam tudo lá de dentro antes que eles batam as botas?

V: Hã?! Não, pelo amor de Deus, não, ninguém mata ninguém!

M: Então, como…?

V: São os pacientes que já estão em morte cerebral, entendeu? Com atestado de óbito e tudo. Existe uma legislação extremamente rigorosa para isso. Quando o cérebro morre, a gente precisa deixar todo o resto funcionando até que os cirurgiões cheguem e façam a captação.

M: Hm… OK.

O garçom aparece para perguntar se está tudo bem, se precisam de mais alguma coisa. Marcelo pede dois chopes, “Um pra mim e outro para o meu novo amigo aqui”, e agradece. Homem que é homem não bebe long neck. Após o brinde:

M: Vocês assinam o atestado de óbito de alguém cujo coração ainda está batendo?

V: Se a morte cerebral for confirmada, sim.

M: Pô, que da hora! E se o coração parar de bater assim, do nada?

V: Aí a gente faz a ressuscitação cardíaca. Massagem, choque, aquelas coisas.

M: Vocês ressuscitam o morto?

V: Hã… Não no sentido de trazê-lo de volta à vida, claro.

M: Até porque vocês já assinaram o atestado de óbito, certo?

V: Sim.

M: Ressuscitá-los seria como um assassinato, só que ao contrário.

V: Não estou te acompanhando.

M: Vamos colocar da seguinte maneira: vocês ressuscitam o morto no sentido figurado.

V: Pode-se dizer que sim.

M: Acho que entendi. Cara, isso tudo é muito doido, espera até eu contar para os meus amigos, aqueles sabichões.

Marcelo parece mergulhar no próprio mundo de fantasias e reflexões. Valter aproveita para tomar um gole do chope e assistir um pouco ao jogo; ele sabe que esta conversa maluca ainda não acabou — consegue sentir de longe o cheiro da cabeça embriagada de Marcelo, fervilhando e cozinhando tudo o que acabara de ouvir.

M: Agora eu entendi a questão dos zumbis…

Valter engasga.

V: A questão dos zumbis?

M: É. Zumbis, mortos-vivos, sabe do que eu estou falando? Eles andam por aí gritando “cérebroooo, cérebroooo”, mas eu nunca tinha entendido de onde vinha essa coisa de zumbi gostar tanto de cérebro. Por que eles não comem o coração, por exemplo? Se coração de galinha é assim tão gostoso, imagino que o nosso também seja. Ou quem sabe os intestinos? Mas agora faz todo sentido…

V: Explique-se, por favor.

M: É uma referência à morte cerebral, cara. Não vê? Os zumbis comem cérebro porque é a única coisa que não funciona em seus corpos, então eles precisam se reabastecer. Daí eles saem se arrastando, atacando e comendo todo mundo e… Meu Deus!

V: O que foi desta vez?

M: Os caçadores de zumbis! Eles são uma referência aos médicos! Matam os mortos para que outras vidas sejam salvas! Puta que pariu, preciso escrever sobre isso antes que eu esqueça! Uma caneta, por favor!

V: Sério, você precisa é parar de beber.

M: Doutor, nunca estive tão sóbrio em toda minha vida. O mundo precisa saber que vocês andam arrancando órgãos de zumbi e disseminando o vírus por aí! É muito arriscado! E nem adianta tentar me impedir. Não tem uma caneta aí pra me emprestar?

V: Sinceramente? Pra mim chega.

Valter se levanta e vai embora.

M: Ei, ei, volta aqui! Ainda não fiz minha outra pergunta! É sobre eutanásia!

Mas Valter finge que não ouve e sai andando pelas ruas de São Paulo, onde os mendigos morrem de podre e sequer viram zumbis.

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Pedro Dantas
Revista in-Cômoda

Ficção e não-ficção sobre o que me der na telha.