Meninos do Recife — Abelardo da Hora, 1962

Não dá pra ser feliz

Lucas Arcelino
Revista in-Cômoda
Published in
3 min readMay 11, 2023

--

Seu sonho é sua vida/ E vida é trabalho/ E sem o seu trabalho/ Um homem não tem honra/ E sem a sua honra/ Se morre, se mata (Gonzaguinha, 1983)

Com timidez, a criança raquítica e maltrapilha bateu palmas na frente da venda do Lunga. Suas mãos frágeis, descarnadas, batendo uma na outra com força, para chamar atenção, pincelavam de dor o constrangimento da miséria.

Lá de dentro foi vindo o dono, respondendo ao chamado. Ao ver a silhueta da pequena figura, disparou logo de antemão:

– Tenho ajuda hoje não.

– Pera aê seu Lunga, venha cá! pra pedir ajuda não.

Ponderando a situação e resgatando sua moral cristã dos recôncavos do coração, Lunga decidiu ir, afinal, um vintém de caridade não faz mal a ninguém, ainda mais quando o pedinte não quer ajuda.

– Diga lá, minha filha.

– Painho pediu pra chamar o senhor, ele tá precisando de um favor.

– Onde é que ele está?

– Tá na pracinha do Santo Antôin, disse pra eu dizer que não era pra pedir dinheiro nem comida, era só pra ajudar ele numa coisa.

Coçando a barriga flácida, o dono da venda ficou encucado. O que um mendigo queria com ele? Conhecia o sujeito de vista, estava sempre na pracinha na frente da Matriz de Santo Antônio, junto da criança magrela e um cachorro três vezes mais magro. Uma vez Lunga o chamou para capinar os matos do quintal, deu em troca duas marmitas e uns produtos que estavam para vencer no seu estoque.

Não conseguia lembrar de seu nome. Provavelmente nunca o soube. Mas por fim a curiosidade foi maior que o receio. Lunga fechou a venda e acompanhou a menina.

O homem observou a criança ao andar, evitando cruzar olhares. Havia algo de assustador naqueles olhos pequenos e profundos. Diferente de outras crianças, que irradiam sonhos no olhar, aquela criatura emanava angústia com nuances de desespero. Eram pupilas atentas ao caos urbano, aos perigos da rua e a morte iminente em qualquer esquina.

Chegaram à pracinha e Lunga se deparou com o pai da menina, próximo a um banco que servia de closet precário para armazenar farrapos. O pai, imagem e semelhança da filha, carregava o mesmo olhar, e estava ocupado remexendo um grande pedaço de papelão. Ao ver o dono da venda, ergueu-se, e limpou as mãos em seus trapos de roupa.

– Seu Lunga, que bom que o senhor veio. Deus é bom. Sabia que o senhor não ia negar, é o único que me olha como gente quando sai da missa, o senhor vai poder me ajudar.

– Sua filha me chamou na venda, mas não disse o que era. Me diga logo, que eu não posso deixar o negócio fechado nessa hora. Não tá fácil pra ninguém.

– É coisa rápida senhor, não vou ocupar muito o senhor não, longe de mim querer prejudicar. É que o senhor sabe escrever, não sabe? Eu tô precisando de alguém pra escrever pra mim um cartaz porque eu não sei essas coisas, pra mim poder pedir trabalho no sinal.

A voz do homem andrajoso, carregada de vergonha e incerteza, completava o retrato infeliz da humilhação. Uma voz que se desculpava por não saber escrever, por viver na rua, por se alimentar de lixo, por não poder garantir que sua filha chegará a sua idade, e principalmente por existir.

Lunga engoliu o incômodo, e acelerou o processo, para poder ir embora e voltar a esquecer da existência daquelas figuras aflitas. Pegou o pedaço de carvão que lhe foi estendido e rabiscou no papelão as seguintes palavras:

“PROCURO QUALQUER SERVIÇO. SOU TRABALHADOR”

Saiu sem se despedir. Cumpriu seu papel de esquecer. Duas semanas depois, logo ao sair da missa, um amontoado de gente e um burburinho o atraiu. Viaturas pintavam com luz vermelha a copa das árvores e os bancos da pracinha de Santo Antônio. No cenário escarlate, demorou uns bons minutos até reconhecer sua letra, estava difícil de ler, o papelão enrolava um corpo sem vida, ao lado de uma criança de olhos encarnados, que sem pecados, vivia o inferno.

--

--