Lucas Arcelino
Revista in-Cômoda
Published in
4 min readMar 20, 2018

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Nomadismo digital e a Identidade “Transfronteirizada”



Foto por Lucas Arcelino — ‎outubro‎ de ‎2016

A condição nômade foi deixada de lado pela maior parte da humanidade logo após o descobrimento e implementação da agricultura. O homem passa a ser um animal sedentário e constituir comunidades fixas que estabelecem vínculos com o lugar, proporcionando toda uma teia de significados compartilhados que desembocam numa identidade coletiva.

Com as grandes navegações, os ocidentais tiveram contato com culturas completamente distintas. Este contato provoca uma inquietação e curiosidade para com o “Outro”. Tem-se então o início da Antropologia e o contínuo exercício da alteridade.

Este processo desemboca na globalização, na qual as grandes distâncias que separavam o mundo encurtam-se consideravelmente, tanto por conta dos meios de transporte que permitem uma experiência física de alteridade ao se visitar um outro país, quanto por meio da tecnologia da informação que cria espaços virtuais onde pode-se ter experiências simuladas de culturas de todas as partes do globo, além de interagir com um número incalculável de pessoas de advindas de todos os lugares.

A tecnologia da informação revoluciona também o mundo do trabalho, e é aí que se insere o fenômeno dos nômades digitais. A ampliação da banda larga e os avanços nos mecanismos de comunicação criaram novas possibilidades de profissões nunca antes imaginadas. Hoje é possível, e não muito incomum, a contratação de serviços à distância. O empregador necessita de uma solução para determinada demanda, entra em contato com o profissional (que pode ou não estar vinculado a uma empresa ou agência) realiza reuniões acerta preços, monitora e avalia os resultados, sem nunca ter estado uma única vez na mesma sala que este profissional.

Nessa realidade, o profissional trabalha remotamente. Ele deve cumprir os prazos, mas não há um controle sobre como utilizará seu tempo, nem o obriga a estar num escritório ou qualquer outro ambiente fixo. Assim, não faz diferença para esta relação de trabalho se o profissional tem residência fixa, se ele vive na mesma cidade que o contratante ou se ele está todo mês em um novo país e esteja o tempo todo trocando de moradia.

Por conta do seu trabalho remoto, os nômades digitais têm a possibilidade de não estar sempre no mesmo lugar, e optam pelo modo de vida dinâmico, viajando de cidade em cidade, conhecendo lugares e pessoas constantemente. Devido a este estilo de vida é praticamente impossível a criação de vínculos com os lugares que vivem. O pouco tempo de estadia num lugar tem que dividir-se em: trabalhar; dar conta das necessidades básicas, como onde se alimentar, onda há uma farmácia, etc.; e conhecer a localidade, as pessoas e as culturas.

Foto retirada do google imagens

O antropólogo francês Marc Augé defende que um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico. (AUGÉ, 1994). Isto é, para que determinado ambiente físico seja considerado um lugar, ele necessita de algum elo que gere pertencimento no indivíduo, seja um laço cultural, uma relação de ancestralidade, ou apego emocional. Em contraposição a isto, a modernidade criou diversos ambientes onde os indivíduos habitam rotineira e temporariamente, mas não criam laços. São locais de transição como terminais integrados, shopping centers, avenidas comerciais, etc. Estes são chamados por Augé de “não lugares”.

Os nômades digitais vivem constantemente em um meio termo entre lugar e “não lugar”. Eles estabelecem relações na localidade em que se encontram, e as vivências acumuladas nessas andanças fazem parte da sua construção identitária, entretanto não se cria um elo de pertencimento entre indivíduo e ambiente. A importância do valor simbólico ligada à sua localização geográfica se perde, em detrimento de uma identidade fundada nos “entre lugares”. É uma identidade transfronteirizada que faz parte da condição de nômade digital.

A questão que me incomoda seria que, posto que o pertencimento e o vínculo com um lugar parece ser um fundamento tão importante da formação identitária do sujeito, o que faria tais sujeitos abrirem mão da construção desse pertencimento?

Creio que a inquietude provocada pela eterna busca do Eu no meio de tantos Outros, provoca uma demanda por autoconhecimento, experiência em ser si mesmo. E não há forma mais vívida de perceber-se que colocar-se em contraste com o Outro através da alteridade. Eu diria então, que os nômades digitais são uma espécie de viciados em alteridade. Escapam das fronteiras físicas e simbólicas de seus locais geográficos e abraçam a aventura da busca de si pelo mundo.

FONTES:

AUGÉ, Marc. Não-Lugares: Introdução à uma antropologia da supermodernidade. Campinas, SP: Papírus, 1994.

Podcast Mamilos. EP. 133 — Nômades digitais. Disponível em: http://www.b9.com.br/86078/mamilos-133-nomades-digitais/

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