O destino das vontades

Da noite da mentira, das trevas para a luz

Gabriel Muney
Revista in-Cômoda

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O Sepultamento de Cristo, 1603 — Caravaggio

no corpo de Gabriela qualquer nível de estranheza diante da decisão. Está arrependida (pelo desgosto e desgaste; pelo choque e baque, que causaria à avó), por mais que não tenha, ainda, consumido o desejo. E, mesmo assim, não pode desistir, ou negar-se a cumprí-lo; a nova revolta movimentou-se tão lenta e gradual até o estômago, vindo tão de dentro, mais intrínseca a ela que sua própria identidade, que ela cuspiu na cara das vontades: só para acatá-las. Quis seguir em frente. Levantou da cama e encarou o espelho por poucos segundos; e na urdidura em que se formam os tempos, caíram às mãos e aos olhos como horas em luzes — soaram, esses segundos, eternos na imagem. Foi a última vez em que se viu dupla entre nuances. Depois dessa manhã, veria tudo de um só ponto-preto irreversível. Saiu do quarto e cruzou, no corredor, com dona Nalva. Buscou-lhe a mão e disse:

— A benção, minha vó?

— Que Deus lhe dê juízo. Viu?! Eu não disse?

Gabriela observou a luz do dia lá fora através das janelas e voltou-se para a avó, balançando a cabeça num tom de aprovação, riscando a serena fisionomia com um sorriso.

— Bem previsto, vovó. Aquele calor só poderia resultar nisso. Choveu muito à noite? — uma pergunta retórica, visto que passou a madrugada acordada, ouvindo o romper das águas no telhado, angustiada.

— Não, não. Só garoinha fraca — respondeu a avó, sem a menor convicção. — Vai à missa hoje?

— Perdi a de domingo passado. Mamãe ficará irritada se eu não for. E a senhora?

— Vou amanhã para acompanhar a homilia, com Lita. Sabe que esse sereno de manhã fria me faz muito mal? Estou corizando.

Gabriela se senta à mesa e busca a xícara emborcada sobre o manto, enchendo-a com a água fervente do bule à espreita. Busca uma colher rasa de açúcar num dos potes expostos, mexe o líquido com lentos e repetitivos giros e, por fim, põe mergulhadas duas folhas verdíssimas de cidreira podadas de seus caules. Deixa o chá descansar, quieto, enquanto observa ainda o curso de uma força giratória que não mais investe sobre a corrente e, porém, continua a girar e girar, a cada giro mais devagar que o anterior; como existir — pensou, que com o passar dos dias deixa de depender de um impulso, liberta-se das vontades, mas ainda sofre o reflexo das pulsões insistentes; invisíveis dum espectro ausente que, ora ou outra, há de estagnar frente a si mesmo. Olha para a avó, de pé, ao canto.

— Recebi a resposta do internato.

— Menina! — dona Nalva dá um pulo de surpresa. — E então?

— Fui aceita — diz, mirando o chá de corrente quase inerte na xícara, começando, pouco a pouco, a mimetizar a cor das folhas derramadas. — Querem que eu vá logo. No máximo, amanhã. Se não, perco a vaga. Estão abrindo uma nova turma.

— Léla! Que alegria, minha neta! Mas que horas, isso? Hoje? Ontem? Como soube?

— Recebi uma carta através da tia Lita, que o bom homem passou. Ela me entregou ontem a noite, sem muito alarde. Só não lhe disse porque não quis preocupá-la, nem lhe afobar sem precisão.

— Não ia me contar se tivesse sido rejeitada?

— Contaria independente do resultado. Estava querendo só me certificar de que não teria uma decepção.

— Então temos muito a que resolver. E logo, já! Agora mesmo! Suas roupas estão limpas? E as meias? Onde guardou sua mala? Aquela, que usamos na viagem para…

— Vovó…

— Beba logo esse chá, menina! Precisamos arrumar tanta coisa ainda! Seus documentos estão bem guardadinhos? E as calcinhas? Senhor! Não me leve aquelas velhas, as Irmãs vão achá-la nojenta… cadê aquelas que compramos com os mascates? Ah! Não prestam. São muito coloridas. Será que até pra isso há restrições? Será que as Irmãs só vestem calcinhas pretas, beges…? Ainda bem que você está mais cheinha. Vinha magra demais. Ande, beba!

— Vovó…

— Minha nossa… e não vai dar pra comprar nem cadernos, canetas… hoje está tudo fechado no comércio. Vá buscar as roupas sujas, vá! Espero que essa garoa dê uma trégua, para ter tempo de secar tudinho. Roupa malseca tem catinga…

— Lá se usa uniforme, vovó. É um convento.

— É verdade — diz com certo alívio. — Mas, ainda assim as Irmãs gostam que as novatas levem suas antigas vestes. Elas podem doar para os mais precisados. E ainda há muita coisa a se resolver. Daqui pra Laurentim são mais de nove horas, nove longas horas… beba esse chá, menina! A mala, onde está? Assim não vai dar tempo de ajeitar…

— Eu já arrumei tudo, vovó — diz, buscando com a colher as folhas de cidreira imersas no fundo da xícara preenchida pelo líquido verdemarrom desbotado. — Ontem mesmo, antes de dormir. A mala está pronta, no quarto.

— Que menina desenrolada você é, Léla. Mal posso acreditar. Minha neta! Neta minha entregando a vida à devoção… sabia que sua bisa ficaria muitíssimo orgulhosa? Acho até que choraria. É de se emocionar! Pense, Léla, que render-se ao que é belo e bom pode ser uma tarefa mais árdua do que render-se à própria existência. Se, de fato, é possível entregar-se à vida… viver é, invariavelmente, um ato de queda, o sem-dó cair; em alguns tantos uns, não há alternativa, nem desejo. O mundo é uma teia de enganos; todos os marcos confiáveis são, também, armadilhas. Por isso eu digo, e sempre disse: vão à Igreja, gentes de Deus, vão ouvir o verbo. Só dentro da Igreja é que se encontra o belo, o bom: a salvação. Não parei de dizer isso às minhas filhas, netas… e parece que só você me ouviu. Sábios os que se preservam. Como você, minha neta. Meu orgulho. Viverá por Jesus!

Depois disto ouvir, pensou no que poderia responder. Estalou, dissociada, um dos dedos e segurou muito bem a xícara com toda a palma da mão direita. Quis, por um instante, deitar seu corpo numa quentura como a da cerâmica fina nunca modelada. Ainda observou furtiva, durante um reflexo imperceptível, no fundo dos olhos da avó; quis dizer a verdade — e logo desistiu. Desviou os olhos ao chá de superfície quieta; entendeu como teria de agir.

— Sim, vovó, eu sei. Tem razão. Fique tranquila. Não há muito o que fazer. O que tinha, já resolvi. Vou na última van, às 10h. Chego lá de manhãzinha, em tempo de assistir a primeira aula — dá um longo gole no chá, fazendo uma careta. — A senhora está muito ansiosa. Mais do que eu, até! Sente aqui. Tome um chá comigo.

— Hoje vou querer café — diz, sentando na cadeira ao lado de Gabriela. — Só acho estranho que seja assim, tão de repente. Anelita nada comentou comigo.

— A pedido meu, para não deixá-la arisca. Exatamente como está agora…

— Ah, besteira! Pare de se preocupar comigo, menina. Estou velha e sou vivida. Eu vi na vida agonias… agora, pelo contrário, estou alegre, só. Me sinto bem, melhor do que nunca, com essa notícia.

— Vou me pentear. Mamãe está pra chegar.

— Não me diga que até Patrícia soube antes de mim?

— Vó! Imagina só?! A senhora foi a primeira a saber, depois de mim. Só à senhora caberia receber esta notícia. Vou contar para ela durante a missa. Sei que ficará, também, muito feliz — e abaixa os olhos, feito estivesse sendo irônica; isto dona Nalva não nota.

— Não é pra menos. Vá se arrumar! Será sua última missa nesta realidade mundana. Sua última homilia com o Padre Barttoni. Depois de hoje, você não será fiel, mas parte integrante da própria Igreja; como o sangue que corre dentro do corpo de Cristo.

A menina termina o chá e se levanta. A avó, sem sequer tomar o café que havia dito preferir, a acompanha. As duas trocam olhares, pelo menos na aparência, felizes. Às beiras da mesa Dona Nalva abraça Gabriela; apertando-a, a avó lhe dá um beijo na testa: soube com este beijo que a vida é crua. Faminta como bico dos corvos. E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima, olho d’água, bebida.

*

Via o espectro no espelho e todos os seus movimentos se desdobravam perturbadoramente mecânicos. Gabriela estava esfregando a colônia no pescoço quando Patrícia chegou. Apressada, não quis entrar; por isso, logo as duas seguiram a pé até a igreja. Assistiram os primeiros minutos da missa autocentradas e silenciosas, como de costume. Padre Barttoni ocupava os ouvidos das almas sentadas nos bancos com seus sermões. Gabriela poria início às pulsões, agora. Consciente, se ajoelhou justo no momento em que Patrícia achou bastante inoportuno; pôs-se a orar sussurrando alto o suficiente para que a mãe ouvisse.

— […] Paulo nos diz: Por isso, deixem de mentir uns aos outros, pois todos somos membros de um mesmo corpo. A Palavra de Deus nos orienta a abandonar a mentira e falar a verdade uns com os outros. […]

— Está pagando promessa? — sussurrou inclinando-se perto do ouvido da filha.

— É preciso agradecer, ao invés de só pedir. Deus às vezes cansa de tantas súplicas, a senhora não acha?

— Mas, toda essa gratidão pelo quê? Se puder dizer.

— […] vai muito além da simples honestidade nas nossas palavras; ela também nos convida a examinar a integridade de nossos corações e a coerência entre nossa vida pública e vida pessoal. […]

— Será que é preciso sempre ter motivos extraordinários para expressar gratidão à Deus? Uma bela mentalidade essa sua, mamãe — Gabriela retorna calmamente ao banco, onde senta. — Por acaso, sim, tenho um motivo.

— Logo, de nada valeu a sua pretensiosa lição de moral. E qual é a graça alcançada?

— Já sou devota aceita na irmandade. Serei interna no Convento de Santa Faustina. Viajo hoje para Laurentim. O período de educação se inicia amanhã — disse, mirando a imagem machucada no centro do altar; era Jesus Cristo, pregado à cruz por suas chagas e coágulos.

— […] somos constantemente tentados a esconder nossos erros, nossas fraquezas e nossas falhas para manter uma fachada de perfeição diante da sociedade. […]

— Não me diga! Sua avó está que não se aguenta, sim? Nem imagino…

— Pode apostar que sim. Tomei cuidado para contar, mas não teve jeito. Ela fica pilhada com o menor estímulo. Me preocupo.

— […] a vida pública deve refletir nossos princípios e valores cristãos, não importa onde ou com quem estejamos. Não podemos ser um embaixador de Cristo na Igreja e agir de forma diferente fora dela. Nossas ações, palavras e decisões devem estar alinhadas com a verdade e a moral que professamos como cristãos. […]

— Vai viajar à noite? Não tem medo? — diz, depois de prestar muita atenção nas palavras do Padre.

— Vou aproveitar até o limite este último dia. Quero ficar a tarde inteira com a vovó. Quem sabe isso acalmará mais o coração dela.

— […] devemos examinar o que está dentro de nós, nossas intenções, nossos desejos, nossos pensamentos. Devemos nos esforçar para que a verdade e a retidão não sejam apenas uma fachada, mas também uma realidade interior. […]

— Faz bem. Sentirei falta de sua companhia aos domingos. Sei que não sou uma mãe exemplar mas, pelo que pude fazer, eu era muito nova quando…

— Não. Não faça isso. Não precisa fazer isso. Não se sinta na obrigação de dizer nada impressionante. Isso não é uma despedida, nós nos encontramos de novo. Posso garantir.

— Certamente. Você não tem mais nada a me dizer? O verdadeiro porquê de estar indo para tão longe? — ao perguntar, calou-se, sabendo que Gabriela nada responderia; martirizou-se com todas as culpas do mundo por isso.

— […] somente quando vivemos com integridade, tanto externa quanto interna, podemos ser verdadeiramente instrumentos do amor e da graça de Deus neste mundo. […]

— Mas só daqui a alguns anos, sim? Sei que as meninas ficam presas lá dentro até alcançarem uma certa idade. Não posso ser condescendente com a minha própria filha? Não posso me despedir com dignidade de você? — voltou a dizer, olhando para Gabriela; que, imóvel e de fisionomia impassível, finge nada ter ouvido. Patrícia retorna o olhar ao altar.

— […] é um processo contínuo de conversão e renovação. Não vos deixe desanimar diante das fraquezas, meus filhos, mas sim procurar a misericórdia de Deus e o perdão através do Sacramento da Reconciliação. […]

— Por que não trouxe Alice? — perguntou Gabriela, em tom mais ameno.

— Ela não terá o mesmo juízo suicida que a irmã, eu temo. Há semanas chora, esperneia, provoca vômitos, tudo para não vir à missa. Sequer posso culpá-la — ela ri por baixo. — Também eu fiz muito isso com sua avó. Com a minha avó então, vixe! Elas sentiam tanto desgosto. Pior ainda quando a barriga começou a crescer. É isso o que eu não entendo… bem, depois deram para me prender em casa, para não envergonhá-las em público, grávida tão nova. Mal sabem elas das vergonhas e vontades dos outros tantos debaixo desse teto…

— […] estar dispostos a apoiar uns aos outros em nossa comunidade de fé. Às vezes, a pressão do mundo para sermos hipócritas ou para mascarar nossas imperfeições pode ser esmagadora. […]

— Mãe…

— Sim?

— Antes de terminar aqui, eu quero lhe fazer uma pergunta. Peço, por favor, que não se esquive — enfim vira o rosto na direção da mãe, onde vê o seu perfil; Patrícia continua a mesma.

— […] orar para que Deus nos ajude a ser verdadeiros em nossas palavras e ações, e também para que Ele transforme nossos corações, tornando-os mais compassivos, amorosos e justos. Orar nos fortalece e nos conecta à fonte de toda verdade, que é o próprio Deus. […]

— Pode ser?

— Eu vou tentar. Se não for demandar muito de minha memória. Ando tão esquecida; e é melhor assim. O que foi? Alice roubou de novo um de seus sutiãs? — com sarcasmo.

— Não é isso. Aliás, sim, roubou. O preto, com bojo. Diga a ela que pode ficar. A pergunta é sobre outra coisa.

— […] peço a todos nós que nos comprometamos a viver de acordo com a verdade, a honrar nossa fé em todas as áreas de nossas vidas e a buscar a santidade de coração. […]

— Sou toda ouvidos.

— Quem é o meu pai?

Ouvindo isso Patrícia lentamente girou o pescoço e encarou de frente o olhar da filha. O rosto de ambas ficaram vermelhos, envergonhados, com a diferença que, pelo espanto, a mãe arregalou os olhos. As janelas da alma de Gabriela, ao contrário, deitavam luz sobre a mãe — impassíveis. Um silêncio se estabeleceu entre as duas.

— […] Que a luz de Cristo brilhe através de nossas vidas e inspire aqueles ao nosso redor. Lembrem-se, querida congregação, que somos todos membros do corpo de Cristo, e juntos, como uma comunidade de fé, podemos crescer em santidade e testemunhar o amor de Deus ao mundo. Que a graça e a paz de nosso Senhor Jesus Cristo estejam sempre conosco. Amém!

— Amém! — dizem Gabriela e Patrícia, em coro com toda a Igreja.

— Todos de pé — continua o Padre Barttoni.

A música litúrgica começa a cantarolar por todos os lados; e invade os sentidos das duas, que levantam ao mesmo tempo, ainda encarando-se uma a outra, naquele estático e secreto silêncio entorpecido. As mulheres podem pôr fim às suas vida; mas não podem pôr fim ao seu silêncio. As estrelas, em suas órbitas, cantavam em tons cristalinos em resposta à escuridão do nada-dizer. As línguas sussurravam o caimento ancestral, por cantigas (sempre as mesmas, sempre outras) e hinos de mistério — procurando a verdade. Fitavam-se, mãe e filha, como os dois rochedos errantes, prestes a se chocarem.

— E então? Esqueceu disso? Eu duvido…

— Por que agora? Por que essa pergunta, logo agora?

Vós sois o Caminho, a Verdade e a Vida

O Pão da Alegria descido do céu

Nós somos caminheiros que marcham para os céus

Jesus é o caminho que nos conduz a Deus

— Todos os que nasceram de uma mulher, mais dia menos dia compreendem que ela não foi capaz de se fecundar sozinha. E depois… você fala sobre isso como um marco, um antes e depois na sua vida. Eu só tenho essa curiosidade dentro de mim. Quem é ele, mãe?

— Você nunca precisou de um pai. Cresceu íntegra. É uma menina muito saudável. O melhor que você pode fazer é seguir sua vida assim, sem saber. Eu e sua avó lhe demos tudo. Fizemos tudo o que estava ao nosso alcance. Você sobreviveu muito bem nesses dezesseis anos sem saber. Que diferença isso faz agora?

Vós sois o Caminho, a Verdade e a Vida

O Pão da Alegria descido do céu

Da noite da mentira, das trevas para a luz

Busquemos a verdade, verdade é só Jesus

— Não use esse momento para passar essas coisas na minha cara. O mérito de minha criação não lhe cabe. Vovó cuidou de mim praticamente sozinha, isso você não pode negar.

— Não nego. E agradeço muito a velha Linalva por isso. Também com a ajuda de Anelita, nós todas enfrentamos isso.

Nada as fazia desviar os olhares uma da outra. Dissecavam e supunham, cá e lá: mãe e filha; filha e mãe; mãe e mãe; filha e filha; qualquer conjuntura que explicasse quaisquer condutas, inteligíveis uma a outra ao tentarem lerem-se; estrangeiras muito mais do que poderia garantir um organismo ter sido criado a partir do outro.

Vós sois o Caminho, a Verdade e a Vida

O Pão da Alegria descido do céu

Jesus, verdade e vida, caminho que conduz

As almas peregrinas, que marcham para a luz

— Podem se sentar! — diz o Padre Barttoni; todos obedecem, inclusive elas, que continuam imersas nas imagens de si mesmas.

— Mas fui eu quem lhe pari — ríspida assim, Patrícia interrompe as interconexões que um longo olhar pode proporcionar quando mira o altar, desviando de ser penetrada pelos sentidos de Gabriela. — E por isso o mérito também é meu.

— Quem é ele, mãe?

— […] de Mateus, capítulo 5, versículos 13 a 16: Vós sois o sal da terra; ora, se o sal se tornar insípido, com que se há de restaurar-lhe o sabor? Para nada mais presta senão para ser lançado fora e ser pisado pelos homens. […]

— Eu não sei. Esqueci.

— Quem é ele, mãe?

— […] Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte; nem os que acendem uma lâmpada a colocam debaixo do alqueire, mas no velador, e assim ilumina a todos os que estão na casa. […]

— Gabriela, por favor.

— Eu nunca fiz questão, mãe.

— […] Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai, que está nos céus. […]

— Nunca fiz questão do seu amor. Nunca pedi que você me colocasse para dormir. Quando temi o escuro não procurei por proteção em seu abraço. Jamais exigi que você me desse uma centelha de atenção. Nunca nem insisti que viesse à missa comigo. Se o faz, é porque quer. De mim você nunca recebeu qualquer cobrança.

— […] A moral cristã não se limita apenas às nossas ações, mas também à nossa influência sobre os outros. Devemos ser exemplo de retidão, compaixão, perdão e amor, atraindo outros para o caminho da verdade e da virtude. Quando nossa moral é insípida, quando não vivemos de acordo com os ensinamentos de Cristo, perdemos nossa capacidade de influenciar positivamente o mundo. […]

— Às vezes, eu me lembro, até vovó insistia para que você viesse me visitar, ficar comigo, numa tarde qualquer de sábado. Mas, eu? Para mim, isso nunca fez a menor diferença. A minha pergunta tem outra motivação. O que eu quero saber, não lhe atravessa a carne, não lhe penetra tão fundo, ou?… Agora, eu estou lhe cobrando. Agora, eu exijo saber.

— […] Quando vivemos uma moral autêntica, quando somos o sal que preserva e dá sabor e a luz que ilumina as trevas, estamos cumprindo nossa missão como cristãos. […]

— Quero que olhe para mim — pede Gabriela; e Patrícia, relutante, atende o pedido. — Me diga. Quem ele é, mãe? Se quiser que eu siga a minha vida em paz, me diga: quem é o meu pai, mãe?

Depois de um profundo suspiro, Patrícia deita nas costas da mão de Gabriela, repousada sobre o joelho, as suas palmas. Ela aperta com culpa e dissabor as mãos magoadas e trêmulas da filha.

— Você quer saber? Vai lidar com isso? É isso o que você quer? Depois que eu lhe disser, garante que vai deixar morrer essa história?

Gabriela retira as mãos debaixo das de Patrícia. Também respira fundo e fecha os olhos; lembrou-se dos giros que davam as águas desbotadas do chá na xícara. Sentiu as pulsões paralisarem; a partir daqui será levada numa corrente invisível de mexer retrospecto. Concordou com um gesto lento da cabeça.

— […] um testemunho vivo de uma moral elevada, que influencie positivamente o mundo à nossa volta. Que possamos iluminar as trevas com o amor e a verdade de Cristo, para a glória de Deus Pai. […]

— Quem é ele, mãe?

— […] Que o Espírito Santo nos guie e nos capacite a viver de acordo com esses ensinamentos […]

— É ele — disse Patrícia, mirando a figura de pé no altar. — Ele, Gabriela. É ele.

— […] para que possamos ser verdadeiramente discípulos de Cristo e instrumentos de Sua graça neste mundo. Amém.

— Amém — disse toda a Igreja, exceto Gabriela e Patrícia.

*

Viram virar a van na esquina e ela já esperava, no banco de madeira do ponto comum, ao lado da avó e de outros, desconhecidos, que também fariam a mesma viagem. Ao seu lado estava a pequena mala, por completo lotada. Ao colo repousava um pesado cobertor que a avó insistiu que trouxesse, temente o frio da madrugada na estrada; sobre ele descansavam os cotovelos. Levava, além disso, uma caneta e um papel dobrado, em branco, no bolso do casaco.

Quando a van parou, a porta se arrastou, abrindo; todos se levantaram, exceto Gabriela. Ela notou que subiam no automóvel e se acomodavam nos assentos. A avó, tomando a iniciativa, pegou a mala e pediu ao caixeiro que a colocasse no bagageiro. Percebeu seus pertences se afastarem com a periferia da visão e nem mesmo isso impeliu-a qualquer movimento.

— Não quer mais ir, Léla? — perguntou a avó, ficando sem resposta. Pouco depois, insistiu. — Léla? Gabriela?!

— Oi? Ah! Desculpe, vovó. Estou com sono. Dormi muito pouco na noite passada. Eu já vou! — gritou ao motorista que buzinava.

Gabriela e a avó eram as únicas do lado de fora da van. A rua estava deserta e a escuridão lhe tomava. A menina levantou do banco e, colocando o cobertor debaixo do braço, chegou mais perto de dona Nalva. As duas não tinham qualquer palavra sobrando — haviam passado a tarde juntas; feito um bolo, juntas; estendido algumas roupas quando o céu abriu, juntas; tomado um último chá, juntas — e, no entanto, queriam falar. Queriam olhar-se com palavras, tornar-se mais próximas. Machucava Gabriela que a avó estivesse tão entregue às ingenuidades, embora por isto não a culpasse. Chegou o momento em que a companhia entre neta e avó teria de se romper; e a ruptura seria sutil.

— Não fique triste. Percebi seu esforço, o dia inteiro, pra não esmorecer. Por que toda essa melancolia? Não era exatamente isso que você queria? Que nós queríamos? Desde quando você se prepara para isso? Pense no quanto o Padre Barttoni, o bom homem, investiu em você! Vai desistir, agora?

— Não era. É! É isso o que eu quero da minha vida, vovó — abaixou os olhos; transpareceu que mentia.

— E o que tanto lhe ocupa o pensamento, menina?

— É que vou sentir saudades da senhora. Só isso.

— Eu não, sabe por que? Porque sei que você vai para servir a Deus. Vai estar me orgulhando, e sempre comigo, mesmo longe. Se você orar por mim, sempre lhe sentirei próxima. É o seu propósito, Gabriela. Foi para isso que você nasceu. Depois de tanto horror, de tanta agonia em minha vida, você foi a melhor e mais abençoada coisa que me aconteceu. Além disso, Laurentim não é assim tão distante! Prometo ir, uma vezinha no ano, nada mal. Para vê-la. Imagina no futuro, Deus que sabe, se você não resolve voltar à Florilumes?! E fundar seu próprio convento aqui! Você tem a maior vocação para Santa, Lélinha. O Padre Barttoni vai achar a ideia muito boa, nossas meninas estão perdidas… não vê Alice, sua irmã? Vou atrás dela, colocar essa menina nos eixos, arrastar ela para dentro do seio do Pai — o motorista aperta a buzina outra vez, interrompendo o monólogo distraído da avó; Gabriela, não por isso, dispersou a atenção da boca carinhosa de dona Nalva.

— Agora vá! Vá, minha linda — segura nas mãos da neta dando leves apertos. — E lembre-se de sempre orar por mim, por sua mãe, por sua tia, por sua irmã… seja boa, Léla. Quer dizer: seja boa, Irmã Gabriela!

— Pare de besteira, vovó — ela ri. — Não beba tanto café. Não se preocupe tanto com os outros. Aproveite a sua velhice. Eu te amo, vó. Eu serei boa porque a senhora me ensinou o que é isso. A senhora me ensinou que a bondade é uma vontade. E é a vontade das mulheres que Deus respira — abraça-a, num só impulso. — Me dê sua bênção. E uma coisa só eu lhe peço. Não faça isso com Alice, vó — engoliu seco. — Deixe-a no mundo, se assim ela quiser. Mas não a leve para lá dentro. Não arranque ela da vida, não mate o que ela tem por dentro; não lhe dê segredos para guardar, nem mágoas para remoer, nem culpas para se amordaçar. Se você me ama, vó, faça o que estou dizendo.

Gabriela solta, reclusa e abrupta, as mãos da avó, e vira as costas. Linalva não compreende o que ela quis dizer; ainda solta perguntas desconexas, mas a neta já havia se acomodado no assento, dentro da van. O caixeiro puxou a porta e o automóvel iniciou sua partida. A avó continuou parada no mesmo lugar até que virasse a esquina. De dentro, a menina não reclinou às janelas o rosto para vê-la estática afastar-se, nem que uma última vez fosse, paralisada pelas forças retrospectas e redundantes, girando em lenta maneira, nunca condizentes com o espelho — eram dúbias as suas vontades; Deus respira sádico — achou que doeria mais. Por fim, chorou. Enrolou-se no cobertor e adormeceu.

Chegavam à Laurentim quando já se podia ver as névoas da manhã a assustar as árvores. Descobriu as pernas e retirou, do bolso do casaco, a caneta e o papel. O motorista, pelo retrovisor, notou que ela o havia apoiado no colo e tentava, esforçadamente, escrever no balanço incômodo e contínuo da estrada. Preencheu um dos versos e, depois, desdobrou-o, tendo escrito também do outro lado. Era o bilhete dúbio; depois, o dobrou e guardou novamente. Ao descerem os primeiros passageiros em seus genéricos e desimportantes destinos, perguntou ele onde preferia que a deixasse.

— O senhor sabe onde fica o Convento de Santa Faustina?

— Sei, sim. Na zona sul. Leva um bocadinho até lá.

— Me deixe bem longe de lá, por favor.

— Longe onde, menina?

— Longe, muito longe, moço. Nalgum lugar bastante movimentado, qualquer um.

— Você nem conhece a cidade, imagino? — e como resposta observou ela sinalizar que não com a cabeça. — Quer que eu te deixe no Centro?

— Fica longe do internato?

— Longe o suficiente para se perder muitas vezes antes de chegar lá, se mudar de ideia.

— Pode ser.

Quando desceu, os primeiros transeuntes do dia seguiam, apressados, com suas bolsas, maletas e mochilas, de pés apertados em seus sapatos, saltos e tênis, bem engomados em suas listras, bolinhas e xadrezes, contrastando com Gabriela, trajada num florido vestido antigo, caído até os calcanhares, tendo por cima um fino casaco que tinha desde a pré-adolescência, período em que já possuía as mesmas formas corporais que tem agora, agarrada a um embolado cobertor, e trazendo noutra mão a pesada mala preta. Esbarravam por ela nas calçadas, quando notou, ao chão, encostada ao poste e muito próxima ao meio fio, uma mulher de vestes muito piores que as dela; suas mãos escurecidas e seco-acinzentadas se estendiam aos que passavam, e estes, feito cegos, sequer miravam nos olhos da penúria e da miséria. Não há piedade aqui. Chegando perto, Gabriela estendeu à ela o cobertor. Depois, pôs no chão a mala, e agachou, abrindo o seu zíper e tirando de dentro as roupas. Doou-as todas. Descalçou os pés e deixou as papetes bem ao lado.

— Deus lhe dê em dobro — disse a mendiga, um tanto incrédula.

— Ele não dará. Porque é mau. Não espere por Ele. Ele não virá.

Deixou, por último, a própria mala vazia ao lado da sem-nome. Ergueu-se e deu as costas, misturando o próprio espectro entre a multidão apertada. Chegou, enfim, à última fase de sua decisão; o cumprimento das vontades dúbias. Caberia, depois, àquele que lesse os conflitantes pedidos. Viu que numa das esquinas se concluía uma larga avenida onde cruzavam correntes de carros apressados. De lá, ouvia as buzinas, os converseiros e as luzes remanescentes no começo de uma manhã sem-cor, distante; antinaturalista. Pôs à frente da calçada um dos pés nus, o direito. Quando avistou, na mesma via, vindo próximo e veloz um carro, pulou em sua frente e assim deixou-se ir. Com a retirada do corpo no asfalto, e durante a biópsia, encontraram no bolso do casaco que vestia um bilhete com os seguintes escritos:

“Quero ser enterrada como indigente. Ninguém deve procurar a minha família, para que não sofram a minha perda. Peço que respeitem a minha decisão. Cabe ao primeiro que este bilhete encontrar.”

E, em seu verso, dobrado para dentro, isto:

“Me chamo Gabriela. Venho de Florilumes. Tenho 16 anos de idade, e desde os 9 sou estuprada pelo padre de minha paróquia. Sei que Deus é mais terrível do que o pior dos homens, pois Sua grandeza transcende toda maldade humana, seres que Ele criou.”

A menina não trazia consigo qualquer documento, registro ou bagagem. Apenas palavras. Pior, palavras dúbias: pedia que lhe deixassem à própria sorte na morte, ao mesmo tempo em que revelava o que carregava como peso. Suas chagas não cicatrizarão. Ninguém a resgatará da cruz em que esteve pregada. Pior: depois de três dias, ela não ressuscitará. Já havia, Gabriela, consumado aquelas suas vontades; consumido o seu desejo; honrado a sua decisão. Ainda que lhe tivesse deitado às névoas o arrependimento, a culpa e o medo; ainda que no último segundo tivesse experimentado o gosto amargo de ser-nada salivar dentro da boca: tornou-se dela mesma e só. Desaparentaram feições e a multidão não apercebia; cravou aos pés, mãos, peito, fissuras infames sem possibilidades de cura. Revelariam os autos a dupla morte: a dela, e a da criança que trazia no ventre, filha do mesmo homem que é o seu pai. No mesmo momento da derrocada irreversível, Linalva recebia a visita de sua filha mais velha, Anelita, para um café.

— E que milagre é esse? Passou das nove, e Léla ainda dormindo… essa é nova!

— Gabriela já está no internato. A carta que o Padre Barttoni passou pra você era sobre a aprovação dela no Convento de Santa Faustina… estou radiante!

— Passou pra mim?

— Sim, Lita! A carta que o bom homem lhe deu, que você entregou a Gabriela, antes de ontem…. ah! A essa hora ela já deve estar tendo a primeira lição. Louvado seja Deus!

— Mas eu não estou sabendo de carta nenhuma, mãe — disse Lita num cantarolar último de estranheza.

Já faz um bom tempo desde a última vez que compartilhei um conto completo e extenso por aqui. Este foi escrito recentemente em meu caderno e agora o trago. Espero que ainda haja leitores procurando por estórias.

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