O dragão que cuspia flor

Rodrigo Santiago
Revista in-Cômoda
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4 min readApr 18, 2018

Sou um dragão igual um monte que tem por aí. Tenho asa de dragão. Tenho escama de dragão. Tenho rabo de dragão. Mas pra muita gente eu sou um alienígena. Eu mesmo me pergunto se não vim de outro planeta. Afinal, onde já se viu um dragão que cospe flor?

É claro que isso atrapalha minha vida. Uma vez levei flores pra Marcela, a menina mais bonita da escola. O problema é que eu não sabia que ela é alérgica a flores. Foram dezessete espirros. Eu contei. Fiquei com tanta vergonha que deu até vontade de chorar. Mas como eu só tinha um lenço, dei pra Marcela assoar o nariz.

Tudo piorou no dia que eu fui ao banheiro e as tochas se apagaram. Se fosse outro dragão, cuspia uma chaminha e pronto: clareava tudo. Mas eu tive que me virar na escuridão, aí voltei pra aula todo molhado. Desde então eu me tornei a piada da escola: ele não brinca com fogo, mas faz xixi na calça.

Só lembram de mim em ocasiões românticas: Dia dos namorados, jantar de noivado, casamento. Às vezes também nos velórios. Tudo isso, adivinha só: culpa das minhas flores. Pra lutar na guerra, que é bom, nunca me chamam.

E não era pra menos: espalhar pétala não fere ninguém. No máximo faz alguém espirrar, que nem a Marcela.

Meu sonho era aparecer nos livros de história, igual meus ancestrais. Ou ser tatuado no braço de algum bravo guerreiro. Na verdade, eu sempre quis ser respeitado como qualquer outro dragão. Até descobrir que isso era possível mesmo sendo diferente.

Tudo aconteceu no velório do pai da Marcela. Ela chorava baixinho enquanto olhava pra ele, rodeado pelas minhas flores. Quando uma lágrima de Marcela caiu sobre as flores, inexplicavelmente elas exalaram uma névoa que tomou conta do velório. Era um perfume doce, suave, e muito agradável. E de repente, para espanto de todos ali, o pai da Marcela se levantou.

A notícia do milagre se espalhou tão rápido como o aroma das minhas flores. E aquele dragão de quem antes todos riam, agora tinha uma legião de seguidores. Minha fama chegou aos lugares mais distantes. Ganhei até o título de Sir da coroa, recebendo medalhas e a espada real numa pomposa cerimônia que reuniu todo o reino. Mais do que mortos, eu despertava comoção por onde quer que passasse.

Perdi as contas de quantas vidas eu fiz renascer: plebeus, nobres, hereges, soldados, ladrões e até traidores da coroa. Não importava de quem fosse o velório. Nem de quem fossem as lágrimas. Se me chamassem eu estava lá, pronto para desafiar a morte. E foi exatamente por isso que me tornei uma ameaça.

O reino estava em guerra. E nosso exército avançava triunfante sobre o inimigo. Graças às minhas flores, misturadas com as lágrimas de mães, pais, filhos e viúvas, fiz centenas de soldados mortos voltarem ao campo de batalha, garantindo uma enorme vantagem numérica pro nosso lado. Mas nem tudo são flores. Ainda mais numa guerra.

Mais cedo ou mais tarde o inimigo também ia querer ter seus mortos de volta. E isso aconteceu bem antes do que o reino imaginava. Assim que eu fui sequestrado, a vantagem passou pro lado de lá. Preocupada com a segurança do reino, a decisão da coroa foi unânime: eu virei seu inimigo número um. Agora eu precisava pensar rápido numa maneira de escapar, antes que o exército inimigo também se voltasse contra mim.

Coube ao líder dos dragões a missão de me exterminar. Ele deveria fazer isso no dia seguinte à minha sentença, nas primeiras horas da manhã. Isso até ele saber o risco que seu povo corria com a minha morte. Consegui convencê-lo de que eu realmente era um alienígena do planeta Zaigon. E que, se ele me queimasse com seu fogo, minhas flores exalariam uma névoa venenosa, matando todos que a respirassem.

Minha mentira deu certo e eu consegui escapar. Pena que o ingênuo líder dos dragões não teve a mesma sorte. Ninguém acreditou na história absurda que ele contou, e o coitado acabou sendo decapitado por não cumprir sua missão. Hoje eu fico pensando se ele tem alguém pra chorar sua morte. Outra dúvida que não sai da minha cabeça: já pensou se a minha mentira cola? Será que os dois exércitos dobrariam os joelhos ao grande rei-dragão cuspidor de flor? Será que assim a paz finalmente reinaria? Talvez. Mas não nesse planeta.

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Rodrigo Santiago
Revista in-Cômoda

Redator publicitário, escritor e criador do Poucas&Bobas: página de contos, crônicas e esquetes cômicas.