O espanto com o que deveria ser "normal"
Em muitos lugares do nosso país, os atos honestos são acontecimentos do outro mundo e viram reportagem. O senhor que devolve uma mala cheia de dinheiro que não lhe pertence, a pessoa que avisa ao transeunte que sua carteira caiu no chão, vizinhos que se juntam para cuidar da limpeza da rua, o trânsito que flui com respeito e harmonia, etc. Também ficamos de boca aberta com acontecimentos positivos de alguns estrangeiros ou em outros países como a Holanda e Suécia fechando presídios por falta de detentos, torcedores japoneses limpando a arquibancada do estádio após jogo na Copa e por aí vai. Quando o que deveria ser normal nos espanta, há algo de rudimentar que precisa ser revisto.
Quando eu era pequena, estava na fila da cantina da escola para comprar um pãozinho e recebi, por desatenção da funcionária, uma mini pizza cujo preço era mais alto. Devolvi, reportando o ocorrido, mas tive que aguentar a risada de alguns colegas que alegavam que a cantina já cobrava muito caro e não seria injusto levar uma vantagem silenciosa.
Enquanto há uma parcela da população consciente de que o fim da corrupção também começa a partir de nós mesmos, a maioria vive em ataque por defesa, com a ideia de que uma nação sofrida tem que correr atrás do prejuizo para se garantir, seja em qualquer nível, pela sobrevivência na selva do “achismo”.
Vivemos com a sensação de eterna desvantagem em relação ao próximo esperto, dotado do famoso e vergonhoso “jeitinho brasileiro”. Esse comportamento, ao meu ver, só é motivo de orgulho se direcionado para capacidade de improviso e criatividade diante das dificuldades que encontramos.
Temos medo de confiar. Somos trapaceados se tentamos ajudar. Golpes chegam por telefonemas, email, zaps, correspondência e toda e qualquer mídia que existir. Oportunismos invadem a ingenuidade alheia. Precisamos cobrar para que se cumpra uma palavra. Se paramos para dar passagem a alguém, quem vem atrás se irrita. Se demonstramos desconhecimento ou insegurança numa negociação, o outro te cobra mais caro. Se não supervisionamos um serviço, fica faltando algo. Se vacilamos, alguém te passa a perna. O bom é sinônimo de besta.
Sentimos que estamos ficando para trás com tanta esperteza sem lembrar que se alguém está ganhando, alguém também está perdendo.
Aos que viraram reportagem aqui pelas boas ações, continuem inspirando os demais a viverem com educação e gentileza, para que não nos acostumemos com o pior. Eu desejaria que alguns de nossos valores fossem tão comuns e imersos na nossa sociedade a ponto de não nos causar mais espanto.