O LARGO DOS LIVROS

Gabriel Schincariol Cavalcante
Revista in-Cômoda
Published in
4 min readFeb 8, 2018

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07–02–18, sp

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A Ari

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Escolhi o lugar mais distante, na parte de cima da sala, e sentei em uma cadeira que fosse ao mesmo tempo escondida e posicionada de forma que, ao me levantar e sair, caso assim se fizesse necessário, envolveria o menor número de pessoas possível recolhendo as pernas para que eu passasse. Era uma cadeira velha e avariada como todas as outras. Lá na frente o professor se sentou em uma cadeira mais nova, com estofado vermelho, e soltou o livro sobre a larga mesa de madeira escura. Piscou os olhinhos atrás das lentes e eu percebi que não enxergava muito bem àquela distância, e também pisquei meus olhos atrás das minhas lentes. Ele abriu dois botões do terno, apoiou o braço na cadeira, pegou o microfone na mão e deu dois tapinhas em sua cabeça prateada: puf, puf. O som percorreu a sala através das caixas de som, e com ele o som das vozes foi diminuindo gradualmente, até cessar completamente, restando apenas o ranger das cadeiras velhas sofrendo sob o peso dos alunos e uma tosse atravancada, que se justificava pelo tempo inconstante da cidade: ora sol, ora chuva, ora sol e chuva. Restando apenas o ranger das cadeiras, a voz do professor murmurou pelas caixas:

Acabamos as formas de dissolução parcial da sociedade, então vamos continuar falando sobre como opera a solidariedade dos sócios nas limitadas.

Era uma voz sem pressa, que caminhava e não corria. Era uma voz que caminhava em um dia frio, com os ombros erguidos, mas sem acelerar o passo. Era baixa feito a respiração e tinha pontos agudos que lembravam uma infância que não combinava em nada com o homem que falava lá na frente, com seus cabelos brancos, óculos redondos e olhinhos pequenos. Era uma voz que não chegava, ainda que não deixasse de caminhar.

E como ela não chegava, eu ouvia cada uma das palavras mas delas não restava nada senão o som, que é da voz o instrumento, mas não o fim. Era só o som, como a cadeira que range, a tosse atravancada. Distante e inatingível, abri sobre o colo um livro e fixei os olhos em suas linhas. Das linhas som nenhum era emitido, então eu tive que cerrar os olhos para ouvi-las: no começo só um ruído indistinto, depois um outro acorde, e, enfim, sem que eu percebesse o momento exato da transição, só as palavras escritas gritavam e eu não ouvia nada além dos seus significados, não ouvia nem a voz do professor, nem as cadeiras, nem a tosse, nem o meu coração acelerado.

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Andar no centro de fones de ouvido é tapar os olhos diante da beleza: é preciso ouvir o que a cidade diz. Enfiei os fones no bolso e continuei caminhando, acossado por tudo quanto é som distinto, e lutando para discernir e diferenciar cada um dos seus significados. O dia estava quente e o ar estava pesado e as nuvens acima de mim eram de um tom cinza de ameaça.

Minhas costas suavam e eu não sabia se andava mais rápido para chegar logo ou mais devagar para ficar menos cansado. As ofertas eram feitas aos montes, tudo por dez reais, eu hoje saio mais cedo, como você tá, não tô te ouvindo, ô, meu bom, tem um cigarro? Um emaranhado de vozes que formava um labirinto para o sentido. E os carros seguiam pela rua, os ônibus moviam suas toneladas com seus motores potentes e as motos encontravam os buracos exatos para seguirem apressadas.

Você enfia no seu cu então essa merda, seu velho do caralho, disse um senhor de boné e barba grisalha, vestindo um avental branco na porta de uma barbearia. Enfia no cu então, repetiu, e o outro senhor, esse sem boné e careca, gesticulava lá de dentro sem que eu pudesse ouvir o que dizia. Vinte anos trabalhando junto e toda semana é isso, disse um homem com um copo de cerveja na mão, sentado à mesa em frente ao bar do outro lado da rua, na calçada em que eu caminhava.

Toda semana?

É, toda semana, ele respondeu ao outro. Sempre a mesma ladainha.

Enfia no cu, porra, o senhor de boné continuava repetindo, e o outro continuava gesticulando. E eu demorei a notar que dentro da barbearia dois homens, um de certa idade, perto dos cinquenta, e outro um rapaz, não mais que vinte e cinco, estavam sentados de frente para o espelho, um ao lado do outro, sem esboçarem qualquer reação. O rapaz mais novo mexia no celular e o mais velho fazia palavras cruzadas. Apenas aguardavam o desfecho inevitável e ali permaneciam, até que seus cabelos fossem devidamente cortados. E eu me perguntei como é que eles não faziam nada, mas então o velho voltou lá para dentro, pegou a maquininha e continuou a cortar o cabelo do rapaz, enquanto o outro, careca, pegou lâmina para fazer o pézinho do homem de certa idade.

Aí, pronto, falou o homem da mesa. Viu só? E ele falava com amigo que também estava sentado, mas eu vi também, e concordei com a cabeça.

Às vezes o som das palavras chega, mas seu significado fica pelo caminho, perdido em alguma barreira, preso em alguma rede intransponível. Às vezes a rede está logo na boca de quem fala, às vezes está no ouvido de quem escuta. Às vezes deixa passar só o que é ouro, feito uma peneira, às vezes deixa passar tudo, feito filtro estragado. E às vezes, com os olhos, eu ouço tudo muito bem, mesmo que eu não enxergue tão bem assim sem meus óculos.

*

E quando o som me alcançou de novo lá no fundo daquela sala, era o som dos corpos se levantando e agora eu é quem precisava recolher as pernas para os outros passarem. Pisquei meus olhos e o professor não estava mais lá. Pisquei de novo, porque eu também não estava, até então.

Melhor para os dois.

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