OLHOS DO CORVO

Gabriel Schincariol Cavalcante
Revista in-Cômoda
Published in
2 min readFeb 27, 2018

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Trata-se de um faz de conta.

Quando Luis Otávio Baldini entrou na sala logo sentiu aquela dúzia de olhos pousarem sobre ele com a submissão e o respeito e a apreensão dos olhos de um corvo sobre a carcaça do boi. O corvo não se regozija, ele aguarda a chance e agradece pelo corpo em decomposição que é seu alimento de mais um dia. Não se trata de maldade por parte do corvo mas sim de fome e oportunidade, e à carcaça o corvo dispensa o seu mais respeitoso apetite.

Luis Otávio não era uma carcaça, mas foi como estar morto entrar naquela sala. Era o novo diretor e os olhos pertenciam àqueles que chefiaria e todos cultivavam, em maior ou menor silêncio, a esperança de conquistarem a posição que Luis Otávio agora ocupava, e por isso seus olhos eram submissos, respeitosos, atentos e apreensivos ao cheiro da carniça. Engraçado que Luis Otávio recebeu a notícia com mais surpresa do que qualquer um e todos confundiram sua expressão tonta com uma alegria tímida e inocente, quando era, na verdade, o desespero de não poder dizer não.

Vestiu-se da melhor maneira que pôde, mas quando entrou na sala a camisa escapava da cintura da calça e a barra da calça estava presa na meia que não combinava com os sapatos. Se ele não tomasse café não teria deixado respingar na camisa branca, mas ele estava tão nervoso que só a rotina automática poderia acalmar aquela tremedeira em suas mãos e ele foi com a mão direto no copinho de café e levou o copinho direito até a boca e assim que o líquido entrou pelos seus lábios ele queimou a língua e cuspiu tudo de uma maneira que os respingos no meio da camisa eram indisfarçáveis.

E todos viram tudo o que acabou de ser descrito sem dizer nada, ainda que a expressão em seus rostos fossem tão claras quanto as palavras poderiam ser. Luis Otávio corou. A primeira mão se estendeu e um sorriso foi oferecido em um rosto barbeado e um corpo ajustado dentro de uma roupa em perfeito alinho: parabéns, Baldini. E o aperto de mão foi forte como o bico do corvo na carne dura da presa. E ele enfrentou cada olhar e parabenização com toda a dignidade que foi capaz de reunir e seu coração só se acalmou ao chegar em casa e notar que seu cão o recepcionou como em qualquer outro dia, ou seja, a língua de fora e o rabo balançando.

Trata-se, afinal, de um faz de conta.

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