OS COSTUMES

Gabriel Schincariol Cavalcante
Revista in-Cômoda
Published in
5 min readApr 11, 2020

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11–4–20, sp

Não é sempre que estamos lutando (mas convém ficar atento). Aqui se luta há muito tempo e se não digo que se luta desde sempre é por respeito a especificidades, mas num espectro mais amplo e menos atento às minúcias, é comum que se diga, sim, na boca dos populares, que só houve luta e não houve paz.

O que não impressiona ninguém.

O que impressiona é esse aspecto pacífico, de um bucolismo que faz o desatento crer se tratar da paisagem do paraíso, em que os sorrisos são trocados e os apertos de mão representam uma enorme camaradagem entre os vivos e os mortos e os que estão por vir (e morrer, assim por diante). É que até na guerra se constrói alguma civilidade. Há muito tempo lutam. Há muito tempo trocam tiros, antes disso lanças, antes disso pedras, antes disso punhos, antes disso qualquer coisa que possa ferir e matar. Não é o ódio que mantém essa base sólida, não, é outra coisa, o ódio é bom para tiro rápido e curto, é bom para injetar adrenalina e fazer correr, mas no longo prazo ele vai se desfazendo, ficando esquecido, e aí quem um dia atirou daqui para lá atira de lá para cá, e vice e versa, assim indo, perguntando, por fim, Por quê?, a pergunta maldita. Não é o ódio.

É a constância.

Manter as coisas em seu estado constante de movimento, sem nunca parar. Sempre havendo guerra. Sempre havendo luta.

Pode-se dizer que é possível o estado de constante movimento funcionar em sentido contrário, da paz, na inexistência da luta. Pode-se dizer, sim. E com razão. Só que para isso seria preciso interromper o movimento da luta, e esse começou primeiro, quando um irmão matou o outro e Eva fingiu surpresa e Adão não estava por perto, é só manter o motor quente e o movimento constante. Deus não fez nada com a leveza de uma bailarina.

Nem ódio, nem amor. Constância.

Ódio e amor são pequenezas das relações entre alguns, vai se construindo e se destruindo, alternando-se, cultiva, colhe, planta, apodrece, começa outra vez. A constância vai além de todos nós. Lutam há muito tempo, há muito, muito tempo. Por isso ao desavisado esses dois sentados conversando por sobre uma mesa em um pátio aberto pode fazer surgir a dúvida e questionar o que eu digo, Aqui não há guerra, diz a voz de quem observa. Aqui não há luta.

Ele (qualquer um dos dois, isso não importa) começou a guerrear cedo, quando foi capaz de segurar uma arma com as próprias mãos. A mãe o ensinou a atirar, ela que lutou muito e morreu lutando, como boa gente que era, e ela aprendeu com o pai, que aprendeu com a própria mãe, que aprendeu com a própria mãe, que aprendeu com o próprio pai, que também aprendeu com seu próprio pai, que aprendeu com a própria mãe, e assim se segue a árvore genealógica. Aprendeu o básico:

Não é sempre que estamos lutando (mas convém ficar atento).

Aprendeu os três princípios basilares desta guerra infinita:

O inimigo é quem nós não somos.

Nós somos os inimigos daqueles que guerreamos.

A luta acaba quando acabarmos todos.

Só é preciso aprender e compreender e praticar, feito um exercício físico, deixando os músculos fortes. Repetir, repetir, repetir, repetir, repetir. Passando de geração para geração, correndo no próprio sangue. O inimigo é quem nós não somos: o inimigo é o outro. Nós somos os inimigos daqueles que guerreamos: a eles também é dado o direito de lutar contra nós. A luta acaba quando acabarmos todos: estamos aqui, não estamos? Por isso a guerra persiste.

Ele (qualquer um dos dois) aprendeu outras coisas também, como usar as palavras, fazer as contas, construir e derrubar, costurar a pele aberta, colocar um osso no seu devido lugar. Trabalha no seu expediente normal, exercendo a sua profissão. Beija a esposa ao chegar em casa. Acarinha os cabelos da filha. Ajuda a criança com a tabuada e aproveita para recitar os três princípios basilares, bem como o básico do básico (que nem sempre estamos lutando etc). A esposa tem seu trabalho, exerce sua profissão, e aprendeu ela com o próprio pai como se luta. Todos na mais perfeita harmonia.

Agora ele e o inimigo compartilham essa mesa no pátio aberto. O inimigo é quem ele não é. Está claro que não se odeiam. Conversam sobre a vida. Contam sobre como os filhos estão crescendo rápido. Jogam cartas, às vezes. O desavisado continua repetindo ao fundo, posso ouvir Isso tudo é bobagem, não há guerra alguma, são feito dois velhos compadres.

É preciso olhar além do limite dos olhos.

A guerra existe há muito tempo e eles lutam há muito tempo. Agora conversam, porque a constância não significa ininterrupção. É sabido na teoria moderna que o descanso só pode ser valioso à atividade contínua. O descanso permite que as energias se recarreguem. A luta não parou. A guerra continua. Nós só estamos respirando. O desavisado não sabe de nada, vê tudo na superfície. Convém ficar atento.

Os dois conversam sossegados, enquanto o tempo se escorre pela terra, entrando nos vincos, descendo às profundezas, tocando as raízes. Uma árvore irá nascer em alguns anos.

Dessa árvore surgirá um fruto vermelho. Desse fruto vermelho alguém irá se deliciar. O gosto na boca, na língua, na garganta. Essa árvore fará sombra, sob a qual dormirão os cansados e em seus galhos subirão as crianças para construir suas casas de faz de conta.

As casas de faz de conta são exatamente como as casas em que vivemos, antes de serem construídas.

Essa árvore crescerá, florescerá, e um dia será cortada ao meio, e o chão será cimentado.

Os dois conversam tranquilos enquanto reina a paz modulada, uma das facetas da guerra.

Quando chegar o momento, que chegará, como sempre tem chegado e nunca deixou de chegar, eu me levantarei e dispararei contra o homem que conversa comigo através da mesa. Ele cairá deitado ao chão e nós diremos adeus, e o desavisado não dirá nada, porque engoliu as palavras.

Chamam isso de estado de choque.

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