Marina Abramamovic — Rhythm 0, perfomance

Monumento à crueldade sistemática

Benjamin Cícero
Revista in-Cômoda

--

Um dia acordei e haviam me pregado os pés numa rua esburacada duma cidade qualquer. Desde então aqui permaneço quase como que parte da paisagem, pois ninguém que passa percebe que preciso de ajuda – meio que esqueceram de mim.

Aos poucos me acostumei com essa nova condição; espantar-se-iam se soubessem quão fácil o ser humano se conforma com a própria miséria. Ninguém percebe a poça de sangue que se forma debaixo de meus pés onde os pregos enferrujam a minha carne e apodrecem meus tecidos. Eu só noto porque tenho olhos, pois não sinto nada, com isso já parei faz muito tempo.

Não vale a pena sentir quando tudo que te acomete são sentimentos ruins. Prefiro ficar como me fizeram ficar: pregado ao chão, de braços abertos, com a cabeça baixa, sujo e sangrando até morrer. Sou o maior monumento do mundo, mas o que homenageio ninguém lembra; fui feito para lembrarem de esquecer.

Ninguém sente culpa dos crimes que não lembra que cometeu, e como poderiam? Poucos sabem disso, mas a melhor maneira de fazer com que esqueçam é jogar a verdade bem na cara de todo mundo. Afinal, é muito fácil se esquecer daquilo que se naturaliza.

Todos os dias centenas passam por mim e me encaram. Alguns me olham por mais tempo que outros, mas todos, sem exceção, sabem que estou aqui; as pessoas me veem, mas ninguém de fato me enxerga. Um monumento não é feito para ser enxergado, ele é feito para ser visto, para fazer parte do cotidiano; como parte da paisagem, ajudo a contar uma história: a história de que sempre estive aqui e daqui nunca irei sair.

Sou a prova viva de que pregar pessoas e as deixar para morrer sempre foi normal.

E, afinal, por que não seria? Ninguém se lembra de um passado em que eu não existia.

Ou, por acaso, você se lembra?

--

--

Benjamin Cícero
Revista in-Cômoda

Há no mundo dois tipos de pessoas: as que gostam de viver e as que repudiam. Eu gosto de fingir que sou um quando sou o outro.