Particular sofrer

Maithê Prampero
Revista in-Cômoda
Published in
3 min readFeb 22, 2018
Fonte: Pixabay

Quem a via na rua, ou no trabalho, ou ainda num barzinho, ou numa balada, boate. Enfim, em lugar qualquer que fosse, não imaginava o particular sofrimento que ela possuía.

Mas acaba que acontece assim mesmo na vida, a imagem que as pessoas veem, a aparência, muito raramente tem algo a ver com a essência de alguém. Felicidade postada, sorriso forçado. Discurso de perfeição, sentimento e decepção. Com ela não era diferente. Havia um particular sofrer em sua vida. Como há nas vidas todas nossas.

Ela costumava carregar dentro da bolsa uma pequena garrafa, uma espécie de cantil, no qual havia sempre álcool. Destilado. Uísque, puro. Era mais fácil que se esquecesse das chaves do carro, ou ainda do celular, ou ainda dos relatórios. Mas nunca do pequeno cantil. Nunca. Sem extremismo. Era nunca mesmo.

A primeira vez que viu a garrafinha de bolso fora em uma loja, no caminho para o bar que frequentava todos os dias, após o expediente, para tomar uma dose de uísque puro. Ou com gelo.

A primeira vez que fora ao bar para tomar doses de uma fórmula mágica e anestesiante, como são as bebidas, ela tinha passado por uma decepção amorosa e, como nos filmes, afogar as mágoas e a fossa num balcão de bar parecia adequado. Ou parecia o que ela queria fazer.

A primeira vez que sofreu uma decepção amorosa ainda era adolescente e não pode sair para beber, deitando a cabeça num balcão de bar. Não, enquanto adolescente ouviu músicas altas, chorou dias e dias. E a decepção passou.

A primeira vez que chorou muito, dias e dias, foi quando viveu o luto do amado cachorrinho, que com ela passou tantos anos, sendo companheiro de brincadeiras no quintal, de corridas, de carinhos tranquilos.

Agora ela já não queria mais nada pela primeira vez, estava cansada das tantas primeiras vezes que havia vivido. E assim tentava seguir sempre a rotina daquilo que conhecia, sem se entregar a nada que primeiro fosse.

O cantil era companheiro antigo, desde o dia em que o vira na loja da rua do bar até o momento presente, nunca mais havia deixado de preenchê-lo com uísque, de colocá-lo na bolsa e de tomar golinhos suaves ao longo do dia. Rotina. Hábito. Sem primeiras vezes.

O que ela não via, enquanto tentava a todo custo evitar os custos de se entregar à vida, era que o particular sofrimento ali fazia sua residência, em seu coração e viver. Não queria mais primeiras vezes, mas continuava com o sofrer.

O particular sofrer vai existir. Cabe talvez a nós escolher se o queremos enquanto inquilino temporário ou perpétuo. Talvez as primeiras vezes de sofrimento valham a pena.

Tomou um gole de uísque às 15h20. No banheiro do trabalho. Após uma reunião cheia de problemas. Guardou na bolsa a garrafa pequena, de forma demorada, quase que em câmera lenta. Tampou, sentiu a garrafinha nas mãos. Respirou fundo, fechou a bolsa. E seguiu, para a particular forma de sofrer a vida.

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