Por Nosso Amor

mariogarciajr
Revista in-Cômoda
Published in
3 min readApr 12, 2019

O céu tinha um cinza que parecia tinta em quadro de Van Gogh, só que sem cor. Pinceladas em retículas, as nuvens criavam formas esquisitas, se recriavam em contornos esmaecidos, se contorciam em movimentos surrealistas. E eu parado no meio da calçada, apenas assistia. Como se nunca tivesse visto um céu em rodopio, fosse em janelas, horizontes ou alguma obra-prima.

Não sei dizer por quanto tempo fiquei ali. Era como se não houvesse mais nada a fazer. E não havia mesmo. Estava em casa quase dormindo quando, sem querer, resvalei meu braço na nossa foto de criado-mudo. Aquela em que aparecemos brindando um vinho branco, com roupa de padrinhos de casamento. Sorrisos largos e olhares cúmplices, cheios de milhares de segredos simples.

E foi só quando resvalei meu braço que se espreguiçava na nossa foto de criado-mudo que percebi o quanto te amo e nem sempre te digo. O quanto te preciso. O quanto te admiro. O quanto sou feliz por ter você ao meu lado. O quanto estaria perdido se nunca tivesse te encontrado.

E foi neste momento, quando resvalei meu braço que se espreguiçava na nossa foto de criado-mudo, onde aparecemos bem vestidos, felizes e sortudos, que tive vontade de sair de casa naquele dia escuro e comprar um presente para você.

Não era aniversário de nada. De nada que eu conseguisse lembrar, pelo menos. Era apenas uma vontade inesperada. Você sabe e sempre gosta de pontuar sobre a dificuldade que tenho. Assumo. Não sei, não gosto, não consigo presentear. Mas naquele dia vestido de cinza, mesmo sem entender, saí de casa com a ideia fixa de trazer algo para você.

E agora eu estava ali, no meio de uma calçada qualquer, numa rua sem nome, em uma esquina sem número, olhando para um céu sem forma e sem rumo. Tentando lembrar de um sinal, uma frase sua casual, que me desse uma pista qualquer de algo que você gostasse e quisesse ter. Melhor não pensar, pensei. Melhor agir por instinto, decidi. Melhor sair logo dali.

Passo por floriculturas, portas de lojas de lembranças, quadros, perfumarias, bugigangas, louças, vestuários, porcelanas, bonecas, bambolês, roupas de cama. Mas nada, nada, nada, nada me encanta.

Quase desistindo, sento no meio-fio. Começa a chover e a fazer frio. Olho para o outro lado da rua e sinto um forte arrepio. Um sujeito sem esperança, fazendo de um muro seu arrimo, segurava uma placa que mostrava o meu destino. Nela estava escrito: VENDO JANELAS COM VISTA PARA A ALMA. Assim mesmo, em letras de fôrma, garrafais, gritadas.

Atravesso a rua sem olhar para os lados. Pareço hipnotizado. Sigo reto no meio de uma rua cheia de carros e com alguns buracos. Ninguém me acerta. Nenhum tropeço. Nenhum percalço. Alcanço o homem, o muro e as janelas. Não pergunto como funciona o artefato. Apenas pago o que fica combinado, coloco o presente embaixo do braço e parto sorrindo já todo molhado.

Chego em casa e você não está. É tempo suficiente para pendurar a janela na parede. Deixo-a fechada. Se é verdade que ela tem vista para a alma. Que seja para a sua, minha amada.

Sento no sofá para esperar. Ponho um long play para rodar. Original Musiquarium, de Stevie Wonder começa a tocar. Abro um livro para não precisar esperar o tempo passar. Mas acabo pegando no sono. Acordo com suas mãos molhadas e geladas em cima de mim. Ainda zonzo ouço você falar com a voz trêmula de tanto chorar: — Vem ver, vem ver, por favor. Tem laços de fita enfeitando o céu em nome do nosso amor!

Agora estamos os dois abraçados. Ao lado da janela aberta. É como se estivéssemos sonhando acordados. Um vasto jardim, cachoeiras e um lago. Nuvens cor de baunilha, céu amendoado e enfeitado com lindos laços de fita lilás. Pássaros cantam Ribbon In The Sky. Como eles são afinados. Como é linda a sua alma agora sendo mostrada na parede do nosso quarto. Como temos sorte de estarmos juntos, como é lindo morar no seu abraço.

Oh so long for this night I prayed
That a star would guide you my way
To share with me this special day
Where a ribbon’s in the sky for our love…
Steve Wonder

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