Prisão Perpétua

mariogarciajr
Revista in-Cômoda
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2 min readFeb 25, 2019
Photo by Erik Witsoe on Unsplash

O café estava ótimo. Mas como tudo o que é ótimo, também havia acabado. Raspava as sobras com a colherzinha. Sempre fico tentando prolongar o que já acabou. No caso do café, menos mal. O gosto permanece na boca por um bom tempo ainda. Vou me despedindo do sabor aos poucos, massageando minha língua no céu da boca. Nunca bebo água antes da última gota do gosto ir embora.

Quando finalmente acontece o desfecho de mais uma experiência sinestésica com o café, tomo um gole de água e percebo que ela ainda está lá, parada, sentada à minha frente, me encarando. Fico meio sem graça e finjo pegar um farelo de bolo no meu colo. Mas ela continua olhando pra mim. Olhando não, me fuzilando com aqueles olhos de bala. A bela com olhos de bala. E ainda traz à baila aquele assunto que achei que já havíamos bebido até o último gole:

- Você ainda me ama, né?

- Isso é uma acusação?

Silêncio. Ela pega o guardanapo, esfrega-o nas mãos, leva-o à boca, olha pra mim, olha para o guardanapo e repete toda a cerimônia algumas vezes. Ela sempre faz isso quando está nervosa. Quando namorávamos, era o jeito que tinha de demonstrar que não estava gostando de algo que eu estava dizendo. Mas agora não namorávamos mais. Éramos amigos apenas. Mas talvez naquele café, em uma livraria de shopping, eu tenha dito alguma coisa ou feito alguma coisa que a fez perceber que eu ainda gostasse dela. Não como um amigo costuma gostar.

- Responda. Você ainda me ama, não é?

- Você continua me acusando, não é?

- Se é uma acusação, você não vai se defender?

- Bem, se isso aqui é um tribunal. Se eu estou em um julgamento. Se eu sou o réu. Se meu delito é te amar. E se a pena para este crime é não poder mais conviver com você… aí eu poderia mentir descaradamente! Mesmo com a minha mão direita sobre a bíblia. Só para poder continuar te vendo, convivendo com você, conversando com você, mandando memes despretensiosos durante a madrugada ou um simples ‘saudadocê’ num domingo de manhã. Mataria e morreria por essas migalhas.

- Mas isso é assumir a…

- Não, não! Eu não vou mentir. Eu prefiro dizer a verdade, mesmo sem bíblia e assumir a minha culpa. Mesmo que pegue pena perpétua por isso. Sim, eu te amo. Eu te amo! Como sempre te amei, do mesmo jeito desde o primeiro dia. Pronto. Satisfeita? Agora pode proferir a sentença.

Sem responder nada, ela se levantou, pegou sua bolsa, olhou pra mim com seus olhos de bala, agora em forma de pena. Virou-se e foi embora. Condenou-me a passar o resto da vida em um lugar chamado Nunca Mais.

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